7/10/2009

Palavras Tortas


Esse é o título do mais novo livro de Maurício de Macedo. O convite para o lançamento está aqui ao lado. Leia a poesia que deu título ao livro:

PALAVRAS TORTAS

O fogo de monturo dos dramas domésticos,
a amargura de uma cidade provinciana,
o ar rarefeito de uma repartição pública
e a pequena poesia que se recolhe
de um mundo tão acanhado,
a pequena poesia que mal expressa
o que se contordce no vácuo
e num enredo de nós cegos.

Não deve ser filosofia,
nem sabedoria, ao menos,
mas é com essas palavras tortas
que a gente caminha
como quem se apoia em muletas.

4/19/2009

Recado para o Frank

Frank deixou um comentário querendo adquirir o livro "A Água e a pedra". Não tenho o seu e-mail mas, se possível, entre contato com edbertoticianeli@globo.com que tenho uma boa informação para você.

3/01/2009

Apresentação

AS DESVENTURAS DA NEGRA FULÔ

Arriete Vilela (*)

Mauricio Macedo é um leitor atento, disciplinado - e compulsivo. Tem dois livros editados - Cinzel da Língua e Sínteses de Sombra - e mais quatro prontos, à espera de publicação.
Este - As aventuras da Negra Fulô - é um texto divertido, aparentemente leve e descompromissado, e bom para uma leitura oral ou dramatizada. À primeira vista, parece uma brincadeira cômica, pois o autor "brinca" com a Negra Fulô, famosa personagem fictícia do poeta alagoano Jorge de Lima, e com algumas personalidades reconhecidamente do domínio público.
Excetuando o Conselheiro Silva ("Mas todo o heroísmo não bastou! para vencer a sanha do agressor/ [...] Tragado por uma bomba,/ morreu Conselheiro"), Joaquim José ("Deputado das Minas Gerais/ representava a oposição/ e falava com voz mansa/ sobre trabalho, progresso e paz"), a Dra. Nise e o Dr. Artur ("que não receitavam drogas nem choque/ - condutas de horror -/ mas distribuíam tinta e pincel/ para os doidos") e Nossa Senhora ("Vai, Fulô, volta para o poema! Reza dez ave-marias e dez pai-nossos/ como penitência"), os demais personagens são tomados risíveis, burlescos, caricatos, pois à história real de cada um deles é acrescido um fato que lhes relativiza o caráter heróico conhecido oficialmente.
O texto, portanto, aparentemente cômico - ou justo por isso -, é crítico, irônico, pertinente: traz à tona, revisitadas e atualizadas, questões muito sérias que compõem a história da sociedade, como a cegueira do fanatismo religioso ("Todos queriam ver/ o choro e o riso da 'santa' na procissão"); o descaso e a conseqüente marginalização do autêntico folclore ("decidiram fundar no sertão/ uma cidade sagrada/ do folclore marginalizado"); a brutal violência contra travestis e prostitutas ("Vez por outra aparecia,/ jogado num matagal,/ com requintes de violência mais bruta,/ o corpo de um travesti/ ou de uma prostituta"); o abuso de poder, seja por desmandos de governos incompetentes e ditadores ("De um rebenque de cabo de prata/ não largava o interventor [...] E Maceió vivia a ordem/ sob a égide do rebenque do Pacificador/ não fossem alguns eventos estranhos/ que já causavam horror"), seja por questões injustas e pessoais ("[...] provocou na Primeira Dama! um ciúme muito grande./ E a Primeira Dama convocou/ o Secretário de Segurança para dar cabo de Fulô. [...] Furioso, o Secretário deu um tiro/ no peito da Negra Fulô.“), e o desvio de verbas para campanhas políticas, atividade paralela ao tráfico de drogas e lavagem de dinheiro ("Era um apartamento muito grande/ o de seu Paulo Calabar [...] Financiara até campanha/ de deputado federal [...] Por vezes vinham alguns homens/ entregar a seu Calabar/ uns pacotes bem fechados [...] E vinham depois outros homens/ apanhar os pacotes/ que guardara seu Calabar").
A sensualidade da Negra Fulô é um elemento reiteradamente ressaltado em todos os poemas e suas façanhas atestam o exercício da sedução mística, sendo, no entanto, devastadoras as conseqüências do seu don juanismo: suas aventuras amorosas finalizam sempre em trágicas desventuras (Passional, A conexão, O seqüestro, A lira, Diana). Como Don Juan, que dispunha de um cavalo veloz com o qual fugia e partia par a próxima conquista, a Negra Fulô, de Maurício Macedo, igualmente parte (ou foge) em "situações-limite" e se aninha no poema protetor de Jorge de Lima, até, naturalmente, a próxima aventura - ou, se preferirmos, até a próxima desventura.
Aliás, o próprio Jorge de Lima não escapa à sedução da Negra Fulô ("Fulô e o Dr. Jorge passaram a namorar,/ em lugares recatados/ na lagoa ou à beira-mar/ com direito a final de noite/ num quarto de motel ou na praia sob o luar.”). Um tórrido, embora efêmero, caso de amor que, segundo Maurício Macedo, antecede a criação do poema: ("Adeus, Jorge,/ que já parto para esquecer minha dor./ Quem sabe um dia eu veja/ os versos do seu amor?!").
O último poema - uma metáfora da própria vida - registra a única redenção possível: a poesia, através da qual os "seres não adaptados/ aos reclamos da modernidade" poderão salvar-se e reinventar o mundo.
O livro de Maurício Macedo presta-se a interpretações várias e muito mais detalhadas. Com a palavra, pois, os estudiosos da crítica literária.
* Arriete Vilela é escritora

As Aventuras da Negra Fulô

Engana-se quem pensa
que a Negra Fulô se contenta
em viver no poema tão belo
que Jorge de Lima criou.
A negra foge do poema, conhece novos personagens, ama, brinca, dança, luta,
morre, ressuscita...
Vive grandes emoções,
enfrenta grandes perigos...
E em situações-limite
retoma sempre ao porto seguro
- o monte das musas,
onde o tempo se traduz
em beleza e eternidade.

Acompanhemos, então,
a negra em suas aventuras que a Poesia tem razões que a História desconhece.

A Procissão

Encantada com a missa
na capela do engenho
onde não podia entrar,
A Negra Fulô fugiu do poema,
atravessou o tempo,
mais uma vez,
e entrou de mansinho,
no dia 27 de agosto,
na Catedral de Maceió.
Subiu no altar,
enquanto Nossa Senhora dormia,
tirou devagarinho
o manto e a coroa da santa
e se escondeu na sacristia.

Quando Nossa Senhora acordou,
ficou assustada
com o que sucedeu
e desceu à procura
do que era seu.
E quando a santa se afastou,
Fulô subiu no altar,
cobriu-se com o manto,
colocou na fronte a coroa,
assumindo pose de santo.
Mal a negra no altar se postou,
foram chegando à igreja
bispo, padres e beatas
para colocar a santa no andor.
Nossa Senhora se escondeu
(Não podia se apresentar
naquela situação).
E foi assim que a negra
foi levada em procissão.

O cortejo saiu pelas ruas
conduzindo a Negra Fulô.
Sobre a cor escura da santa
alguém comentou,
mas a fé relevou o detalhe
(Foi uma ilusão que passou).
E quando o menino disse à mãe
que Nossa Senhora era preta,
levou um cocorote e se calou.

Fulô ia feliz,
conduzi da pelo clero,
prefeito e governador,
majestosa sobre a massa,
carregando o seu andor.
Porém a negra
a emoção não controlou.
Lágrimas descerem dos olhos,
um sorriso de beatitude
em seu rosto se esboçou.
- A santa está chorando!
alguém gritou.
- Está sorrindo também!

outro arrematou.
E foi um Deus nos acuda
no meio da multidão.
Todos queriam ver
o choro e o riso da "santa" na procissão.

O andor balançava,
cai, não cai...
A negra despertou do torpor,
deu um pinote para a chão
e as pessoas gritaram:
- A santa pulou! A santa pulou!
Fulô ficou assustada
e desatou a correr
e o povo corria atrás dela,
querendo a "santa" reter.

Nossa Senhora,
que acompanhava aflita
no meio da multidão,
teve que recorrer ao Filho,
pedindo- Lhe intervenção.
Ergueu os olhos para o céu,
sobre o povo estendeu a mão.
O tempo voltou de repente;
tudo não passou de um sonho,
apenas uma ilusão.

Fulô se escondeu na igreja,
devolveu manto e coroa,
à santa pediu clemência.
Nossa Senhora sorriu,
dizendo com indulgência:
- Vai, Fulô, volta para o poema.
Reza dez Ave-Marias e dez Pai-Nossos
como penitência.

A negra voltou para o poema,
fez a penitência
e deitou-se sobre o velho saco de açúcar
no chão,
enquanto em Maceió as pessoas comentavam
sobre uma epidemia de sonho
que todo mundo sonhou
que Nossa Senhora era preta,
que chorou na procissão
e deu um pinote do andor.

Passional

A Negra Fulô levantou-se nuinha,
vestiu o cabeção
e saiu devagarinho do poema
para não acordar o senhor.
Saiu do poema
e atravessou o tempo
a Negra Fulô...

A negra atravessou o tempo
e foi trabalhar como doméstica
em Maceió.
Foi lá que conheceu Eusébio,
apelidado de Zumbi,
negro forte, de sorriso aberto,
que trabalhava de estivador,
depois de cortar cana
nas fazendas de União.

Conheceram-se numa casa de dança
na rua Barão de Atalaia,
onde havia muita briga
e até peixeirada.
Dançaram várias vezes,
durante muitas noites,
até que um dia ficaram de namoro
Zumbi e a Negra Fulô.
Mas não foi apenas Zumbi
que se encantou pela negra Fulô.
Virgulino, ajudante de pedreiro,
sertanejo de olho vesgo,
que escondia numa caixa
a cabeça murcha do avô,
viu Fulô pela primeira vez
quando foi trabalhar na obra,
perto da casa onde a negra se empregou.
E sua vista se escureceu
como no poema a vista do senhor.
Pensava na negra no ônibus,
no trabalho...
Sonhava com ela de noite.
De seu coração
tomava conta um negror.

Mas a negra nem ligou
para o olhar arrastado de Virgulino.
(Repara se ia querer
um homem feio daquele,
de olho troncho?!
E ainda por cima macambúzio...
Bicho do mato!)
Bom mesmo era o chamego
nos braços do estivador,
o sorriso aberto do negro
e o fungado no pescoço...

Como se não bastasse a sina
de carregar numa caixa
a cabeça murcha do avô,
Virgulino carregava agora
um punhal cravado no peito:
a indiferença da negra
ao pedido silencioso
dos seus olhos...
E aboiava baixinho
para as estrelas
nas noites solitárias.

Para aumentar o sofrimento
passou a freqüentar
a casa noturna onde a negra ia dançar.
E era uma tortura
vê-Ia bonita
nos braços do estivador,
os sovacos suados
e as coxas quase rasgando
a calça apertada.
O zarolho assuntava,
bebendo cachaça no balcão.
Olhava tímido pra negra
e a negra nem ligava.

Certa noite, porém,
encorajado pela bebida,
falou com a língua enrolada
quando a negra passou:
- Fulô, Fulô...
e mal se equilibrando nas pernas
apoiou-se sem querer
nos ombros desnudos da Negra Fulô.
- Te enxerga, enxerido!
assim a negra falou,
seguindo-se rapidamente
um soco do estivador.

O sangue escorreu do nariz de Virgulino
e trouxe-lhe à boca um gosto esquecido,
acendeu em seus olhos um fogo distante
como o sol na caatinga.
Um carcará gritou em seu peito;
segurou no cós da calça
o punhal que fora do avô
e depois foi apenas um golpe
no coração de Zumbi.

Virgulino foi preso,
condenado por homicídio,
mas deixaram que levasse consigo
a caixa com a cabeça do avô.
A Negra Fulô teve medo.
Fugiu para o poema,
retirou o cabeção
e se deitou nuinha
ao lado do senhor
que ainda dormia.

O Seqüestro

Indignada por ter levado
couro de feitor,
a Negra Fulô escapou da senzala,
ludibriando tempo e lugar,
e foi procurar trabalho,
muitos anos depois,
na cidade de Maceió.
Como não conseguiu emprego,
a negra foi disputar,
na avenida Duque de Caxias,
com prostitutas e travestis
um ponto no trottoir.

Maceió fora pacificada
por um interventor federal
que varrera da cena urbana
greves de operários,
passeatas de estudantes
e os excessos do Carnaval.
De um rebenque de cabo de prata
não largava o interventor.
Tantas cidades no Brasil já domara
que era chamado de Pacificador.

E Maceió vivia a ordem
sob a égide do rebenque do Pacificador,
não fossem alguns eventos estranhos
que já causavam horror.
Vez por outra aparecia,
jogado num matagal,
com requintes da violência mais bruta,
o corpo de um travesti
ou de uma prostituta.

Certa noite, já muito tarde,
quando fazia o trottoir,
Fulô foi abordada por um carro escuro
e convidada pra entrar.
Mal entrou no veículo,
levou uma coronhada
enquanto o carro seguiu rápido
levando a negra desmaiada.

Quando Fulô acordou,
estava amarrada,
numa cama velha,
numa sala escura fechada...
Até que de repente
a luz se acendeu
e por uma porta aberta
um homem apareceu.
Trazia na mão um rebenque
de cabo de prata
e foi logo batendo na negra,
enquanto dizia:
- Puta, a gente mata!
Batia à vontade,
parecia não cansar.
A negra gemia,
o corpo sangrava,
doía-Ihe a carne,
faltava-lhe o ar.
De repente, porém,
o homem parou;
dirigiu-se à porta
e bem alto chamou:
- Podem levá-Ia.
Por aqui, a festa acabou!

Fulô foi levada
num carro preto:
Dois homens e um revólver
apontado para o peito.
Súbito, porém,
dois faróis na contra-mão,
um choque, o carro virado
e os dois homens jaziam no chão.
Fulô saiu do carro
e seguiu o caminho do poema sem olhar para trás.
Nos versos, pelo menos,
poderia sonhar com o dia
em que a avenida Duque de Caxias seria chamada avenida da Paz.

A Musa

Por causa de uma paixão súbita
pelo filho mais velho do senhor,
a Negra Fulô fugiu do poema
e foi trabalhar em outra época
na cidade de Maceió
para esquecer sua dor.

Foi trabalhar na casa de seu Gráci,
que ria pouco
e gostava de fumar,
que lia a noite toda

e por vezes escrevia sem parar.

Apesar de sisudo,
era seu Gráci um bom patrão.
Assinara a carteira da negra
e pedia à esposa
que a orientasse na educação.

Tinha poucos amigos o patrão.
Entre eles, o Doutor Jorge,
médico da Santa Casa
que gostava de versejar
e que não tirava os olhos da negra
quando vinha à casa de seu Gráci
para o amigo visitar.

Como Fulô quase sempre
correspondia ao seu olhar,
Doutor Jorge passou a esperá-Ia
na esquina por onde a negra costumava passar.
E abria a porta do carro.
convidando-a para passear.

A negra recusava o apelo
– que no fundo também era seu –
­até que uma noite,
depois de muita insistência,
a Negra Fulô cedeu.

A partir desse dia,
Fulô e Doutor Jorge passaram a namorar,
em lugares recatados
na lagoa ou à beira-mar,
com direito a final de noite
num quarto de motel
ou na praia sob o luar.
E do amor já surgiam
novas inspirações:
da veia poética do médico
brotavam para a negra
versos e canções.

Telefonemas anônimos, porém,
a negra passou a receber,
em que uma voz feminina dizia
que em breve ela ia morrer.
Dizia que tivesse vergonha
e que deixasse o doutor,
que parasse de fazer macumba
para prender seu amor.
(Foi então que a negra pensou
que uma simples empregadinha
não tinha nenhum futuro
tendo um caso com um doutor.)

Certa noite,
quando o amante dormia,
depois dos embates do amor,
a negra se levantou de mansinho,
beijou de leve a testa do médico
e lhe falou:
- Adeus, Jorge,
que já parto para esquecer minha dor.
Quem sabe um dia eu veja
os versos do seu amor?!

E saindo pela janela
foi em busca do poema
onde o poeta a criou,
como quem desaparece devagarinho
sob um caramanchão
de um jasmineiro em flor.

Doutor Jorge não viu mais a negra
depois que acordou.
E comenta-se em Maceió
que durante vários meses
macambúzio ele andou,
pronunciando baixinho:
- Essa negra Fulô,
Essa negra Fulô...

Diana

A Negra Fulô levantou-se cedinho,
afastou as portas da estrofe
em que dormia
e fugiu do engenho de versos
para ser Diana do Pastoril,
na cidade de Maceió,
muito tempo depois.

Usando vestido curtinho,
azul e vermelho,
era um sucesso a Negra Fulô
dançando na praça
nas noites claras de verão.

Certa noite,
quando todo mundo o festejo aplaudiu,
subiu três vezes ao palco
um rapaz de bigode grosso
para colocar no corpete da negra
dinheiro para o Pastoril.

Depois do festejo
o rapaz aguardou a negra
e assim lhe falou:
- Me chamo Deodoro,
sou centro-avante do Clube de Regatas Brasil.
E conversa vai, conversa vem.
foram tomar cerveja...
E ficaram de namoro
Fulô e Deodoro.

E tudo continuou assim...
Até que outro dia,
quando Deodoro foi jogar
em outra cidade do Brasil,
subiu três vezes ao palco
um rapaz de bigode fino
para colocar no corpete da negra
dinheiro para o Pastoril.

Depois do festejo
o rapaz aguardou a negra
e assim lhe falou:
- Me chamo Floriano, sou centro-avante do Centro Sportivo Alagoano.
E conversa vai, conversa vem,
foram tomar cerveja...
E ficaram de namoro
Fulô e Floriano.

Quando Deodoro voltou,
a negra nem ligou.
Ele se ajoelhou a seus pés,
pediu que a negra voltasse
e ela nem ligou.
Então Deodoro comprou
um litro de formicida,
trancou-se sozinho no quarto
e se matou.

E tudo continuou assim...
Até que outro dia
quando Floriano foi jogar
em outra cidade do Brasil,
subiu três vezes ao palco
um rapaz de cabelo vermelho
para colocar no corpete da negra
dinheiro para o Pastoril.

Depois do festejo
o rapaz aguardou a negra
e assim lhe falou:
- Sou o marinheiro ruivo.
Conheço terras e mares.
E conversa vai, conversa vem,
foram tomar cerveja...
E ficaram de namoro
Fulô e o marinheiro ruivo.

Quando Floriano voltou,
a negra nem ligou.
Mas ele não se ajoelhou,
pedindo pra negra voltar.
Puxou uma faca-peixeira
e correu atrás de Fulô.
A negra deu um pinote
da Ponta Grossa até o Farol
- e Floriano atrás -,
deu outro,
do Farol até Bebedouro
- e Floriano atrás -,
deu mais outro,
de Bebedouro até Pajuçara
- e Floriano atrás...
Então Fulô teve um medo medonho,
deu um pinote maior
até os braços do poeta
que escreveu um poema hermético
como uma selva fechada
onde Floriano se perdeu
e a negra se salvou.

A cidadela

A Negra Fulô andava enjoada
dos serviços de mucama
e das desconfianças da sinhá.
Foi então que fugiu do engenho,
escorregando por entre duas estrofes
para uma outra época,
muito tempo depois.
E foi dançar folguedos
na cidade de Maceió.

Desenvolta em todos eles
- seja na dança ou no canto -,
no Pastoril, no Guerreiro
ou no Côco

a negra era um encanto.
E a tal ponto ficou
o povo entusiasmado
que as autoridades a nomearam
Presidente da Comissão
de Folclore do Estado.

Foi ocupando esse cargo
que recebeu a visita de Conselheiro da Silva,
folclorista do Ceará,
que percorria o Nordeste,
organizando um movimento
em defesa da cultura popular.
Sensibilizada por sua exortação,
a negra convocou
todos os grupos de folclore
para uma ampla discussão.
E numa assembléia gigante
representantes de todo o estado
decidiram fundar no sertão
uma cidade sagrada
do folclore marginalizado.
De ônibus ou a cavalo,
a pé ou de caminhão,
caravanas se dirigiram
para o alto sertão.
Liderados por Conselheiro e Fulô,
fundaram a cidade da dança,
do canto e do louvor.

E logo foram atraídos
pelo encanto da cidade
moradores da região
que nunca viram na terra
tamanha felicidade.
Pouco a pouco as fazendas ficaram
sem os braços do trabalhador.
Todos queriam viver
na cidade de Fulô.

Diante do exemplo nefasto,
o governo decidiu intervir,
enviando tropas do estado
para o perigo coibir.
Mas Fulô e Conselheiro
organizaram a resistência.
Com pelotões de Guerreiros,
Marujos e Pastorinhas,
enfrentaram o assalto das tropas
e a cidade venceu sozinha.

Se era perigoso o exemplo,
a derrota era demais
e o Governo decidiu intervir
com tropas federais.
Soldados e tanques de guerra
levantavam a poeira do chão
e aviões de combate
cortavam o céu do sertão.

Lutou como podia
a rudimentar alegria
contra a potência bélica
da tecnologia.

Mas todo o heroísmo não bastou
para vencer a sanha do agressor.
Caíam Pastoras e Marinheiros...
tragado por uma bomba
morreu Conselheiro.

Fulô percebeu
que era inútil lutar
quando os corpos dos mortos
cobriam o lugar.
Deu um pinote até Maceió
e o corpete da Diana entregou
à mulher maluca que dançava nas ruas
tendo no cabelo uma flor.
Deu outro pinote até Marechal
e no cais de Santa Madalena entregou
a espada do Guerreiro
a um velho pescador.
Deu, por fim, um pinote maior
que o poema alcançou
e deitou-se cansada,
coberta de cinza e poeira,
ao lado do senhor.

O Sonho

Indignada com o sofrimento
entre os negros da senzala,
a Negra Fulô fugiu para um tempo
muito depois da escravidão
e foi ser faxineira na cidade de Maceió.

Era um tempo de república,
de democracia e de eleição.
E percorriam o Brasil
falando em ruas e praças
candidatos do governo e da oposição.

A convite do sindicato
das faxineiras da cidade,
Fulô foi assistir na praia da Pajuçara
ao discurso de um candidato
que tinha como lema:
Ainda que tardia, a liberdade.

Joaquim José, deputado das Minas Gerais,
representava a oposição
e falava com voz mansa
sobre trabalho, progresso e paz.
A negra se encantou
com seu olhar tão suave,
com suas palavras bonitas,
falando que o povo sofria
miséria e exploração,
pedindo que todos se unissem
para garantir a vitória
do candidato da oposição.

Fulô saiu do comício
pensando no deputado
(Como era bonito,
que palavras tão lindas dizia...)
À noite, porém, teve um sonho
de gelar o coração;
Sonhou que o deputado era preso,
que era enforcado na praça
e esquartejado depois.

Como o sonho se repetia
durante noites seguidas,
a negra foi consultar
a mulher que jogava búzios
no bairro da Ponta Grossa.
E os búzios disseram, então,
que mais um sonho bastaria,
para tomar realidade
o que no pesadelo se via.

Fulô foi embora assustada,
percebendo que só um jeito havia
de a tragédia evitar:
Voltou, ligeiro, para o poema
onde os sonhos seriam outros
e Joaquim José não correria o risco
de ser morto e esquartejado,
ainda que a liberdade tivesse que tardar.

A Lira

Cansada dos ciúmes da sinhá
a lhe infernizar a vida,
a Negra Fulô pôs uma coroa de fitas,
espelhos e contas de aljofar
e foi ser Lira do Guerreiro das Alagoas.
Foi ser Lira a negra, num outro tempo,
e foi dançar no Natal,
na praça dos Martírios
para o Governador.

A todos arrebatou,
dançando no folguedo,
especialmente quando cantou:
"Tu matas, infeliz,
Aproveita a ocasião,
Trespassa o meu peito,
Fere o meu coração,
Morrendo, tou consolada,
Contigo, não caso, não!"
O Governador entusiasmou-se,
bateu palmas e pediu bis
e no outro dia nomeou a negra
Secretária de Cultura.

Quem ficou triste foi Mateus
- dançarino do Guerreiro
e vendedor de ervas ­
que amava em silêncio a Negra Fulô
(Agora não mais teria
perto dos olhos
a dona do seu coração...)

A ascensão de Fulô,
tão rápida e fulgurante,
provocou na Primeira-Dama
um ciúme muito grande.
E a Primeira-Dama convocou
o Secretário de Segurança
para dar cabo da Negra Fulô.

O secretario mandou
raptar a Negra Fulô,
mas quando a viu de perto,
o homem se entusiasmou com a beleza da negra
que era um esplendor.
Prometeu-lhe então a vida poupar
se a negra aceitasse
com ele casar.

De cima do seu orgulho,
a negra ihe respondeu:
"Tu matas, infeliz,
Aproveita a ocasião,
Trespassa o meu peito,
Fere o meu coração,
Morrendo, tou consolada,
Contigo, não caso, não!"
Furioso, o Secretário deu um tiro
no peito da Negra Fulô.

Quando Mateus soube
do crime que sucedeu,
preparou uma mezinha,
derramou nos lábios da negra
e a negra ressuscitou.
Assim que se levantou,
tendo no peito,
ao invés da ferida,
uma flor,
Fulô foi para outras plagas
pois já estava cansada
de ciúmes de mulher do senhor.
A negra se foi majestosa,
com a coroa da Lira,
enquanto o coro do Guerreiro cantava:
"Meus Santos Reis
Aqui chegamos nós
Chegou nossa Lira
com seus caracóis."

A conexão

Para não apanhar do feitor,
acusada pela sinhá,
Negra Fulô levantou-se, à noite,
escapou pela estrofe que unia
o engenho ao tempo
e foi trabalhar em Maceió
no apartamento de seu Paulo Calabar.

Era um apartamento muito grande
o de seu Paulo Calabar,
de onde a negra via,
quando limpava o salão,
a copa dos coqueirais
e a imensidão verde do mar.
Era um homem muito rico
o patrão.
Tinha fazendas de cana,
comércio de automóveis...
Na Barra de São Miguel,
uma mansão.
Era um homem muito rico,
de riqueza sem igual.
Financiara até campanha
de deputado federal.

Por vezes vinham alguns homens
entregar a seu Calabar
uns pacotes bem fechados
que ele guardava no cofre
na suíte em frente ao mar.
E vinham depois outros homens
apanhar os pacotes
que guardara seu Calabar.

Dentre as pessoas que por vezes
apareciam por lá,
Fulô se agradou sobretudo
de um gringo de olhos verdes
que convidara a negra
para um passeio ao luar.

Encontraram-se na praia,
conversaram no calçadão,
caminharam à beira-mar
e terminaram a noite
num flat do hotel Meliá.
E os encontros se prolongaram
num caso de amor
que muito prazer trazia
para a Negra Fulô.

Certa noite, quando namoravam
numa praia deserta,
ouviram um ruído de passos
por trás de uma vala aberta.
A negra percebeu,
apesar da escuridão,
o rosto de um dos capangas
das fazendas do patrão.
E depois foi um tiro,
ecoando na solidão,
e o gringo jazia morto
com o rosto no chão.

Assustada, a negra saltou,
fugindo das balas
que zuniam de raspão
e correu para o mar,
pedindo à rainha das águas
proteção.
Em seu manto de águas,
Iemanjá abrigou Fulô,
resguardando a negra
da fúria do matador.

Na corrente marinha
Fulô foi levada,
nuinha, até o poema
onde chegou toda molhada.
No outro dia, em Maceió,
os jornais noticiavam
em letras garrafais:
Estrangeiro envolvido em tráfico de drogas
é encontrado morto num banco de corais.

A Epidemia

Esgotada pelo trabalho na casa-grande
e pelos abusos da sinhá
a Negra Fulô teve uma crise de nervos
e saiu correndo porta afora do poema
para ser doida em Maceió,
no hospital Portugal Ramalho,
muito tempo depois.

Foi lá que a negra conheceu
o Doutor Arthur e a Doutora Nise,
que não receitavam drogas nem choque
- condutas de horror -,
mas distribuíam tinta e pincel
para os doidos
e faziam terapias
com batuques do xangô.

Sob o cuidado dos médicos,
a Negra Fulô e os internos
passavam os dias a brincar
entre delírios e pinturas,
sessões de psicoterapia
ou dançando com os orixás...
Até que algo estranho
deu pra acontecer:
os pacientes recusavam
todo tipo de alimento
e começavam a morrer.

Os médicos se reuniram
para discutir o problema,
consultando tratados,
analisando o dilema.
Não chegaram, no entanto,
a nenhuma conclusão.
Então o governo informou
sobre uma estranha epidemia
que estava causando aflição,
a matar poetas e loucos,
seres não adaptados
aos reclamos da modernidade
de nossa civilização.
Poetas e loucos seriam
os dinossauros da época atual,
animais que não resistiram
aos processos da seleção natural.

Emagreciam a olhos vistos
os doidos no hospital,
morrendo nos braços dos médicos
que não podiam deter o mal.
Não vislumbrando saída
para a terrível situação,
os médicos se dirigiram
ao quarto da Negra Fulô.
E enquanto a Doutora mal sustentava as lágrimas,
o Doutor Arthur lhe falou:
- Fulô, minha filha,
você é a única salvação.
Fuja enquanto é tempo.
Volte para o poema
e leve consigo os doidos
sobreviventes da maldição.

A negra se levantou
fraquinha naquele dia,
beijou as mãos dos dois médicos
e foi embora recolhendo
os doidos que podia.
Fulô foi seguindo com os doidos
para o mundo da poesia
e em cada poema que encontrava
um doido a negra escondia,
na esperança de que pudessem
retomar com vida e fantasia
para preservar a doidice
na terra um dia.

1/13/2009

DISPNÉIA

Bati à porta assustado.
Tinha medo, muito medo.
Bati à porta para pedir asilo,
tartamudeando,
com minha voz rouca e dispnéica.

Bati à porta para pedir asilo.
Mas o porteiro me disse
peremptório
que só teria abrigo
quem respirasse a palavra
na eupnéia das formas estabelecidas.

E o porteiro fechou-me a porta
indiferente.
E na rua escura,
sozinho,
engolindo em seco o silêncio
do ritmo proscrito das palavras asfixiadas,
eu tinha medo,
muito medo.

A BORBOLETA

Vem, borboleta pequenina.
Vem e pousa na minha mão.
Vem e me arranca da areia movediça
em que me debato e me afundo.

O SILÊNCIO

É onde se enxerga
o que os olhos não podem enxergar.
É onde se escuta
o que os ouvidos não podem escutar.

É onde o tempo desobedece
às ordens burocráticas
da História.

É a casa do homem,
onde o homem se recolhe
e sabe de si
e dos seus pedaços.

É o templo onde repousa
abandonada
a harpa de Davi.
É onde o poeta toma da harpa
com suas mãos rudes
e tartamudeia os salmos
com sua língua rota.

MEMÓRIA

É lá onde não se morre.
É lá a vida eterna.
Eterna enquanto dura essa teia
que a gente tece.
Eterna, enquanto a gente tece.

A SOMBRA DOS LABIRINTOS

Há uma sombra correndo
nos labirintos do silêncio.
Uma sombra que surge e se esconde
em cada curva do dédalo imenso.
Há uma sombra me chamando para persegui-la
e decifrar seu rosto que já conheço,
mas que esqueço, esqueço.
Há uma sombra me chamando
para refazer seu rosto
que não conheço,
mas que já lembro, lembro.

Há um êxtase suspenso no ar
feito um gavião planando
e uma agonia lânguida
de São Sebastião crivado
na madrugada insone.

POR ONDE PASSEI

Por onde passei sem deixar rastro,
sem deixar nenhuma sombra,
sem deixar ao menos esquecimento.
Por onde passei que não se lembra
e que não esqueço.

Por onde passei
deixando a agonia apenas
de um forasteiro invisível
espreitando na memória.

Por onde passei
"parêntesis no tempo
feito um sonho
em que não me reconheço,
imigrante ilegal, intruso,
perdido de si mesmo.

Por onde passei que não passo,
um silêncio que me assiste
de tocaia.

NO DIVÃ

Você me disse que as palavras me habitavam.
Talvez, convenhamos.
Julgo que se aproximaram de mim
cansadas
as palavras,
peregrinas em busca de abrigo
após longa jornada.
Julgo que se aproximaram
desterradas,
condenadas a uma diáspora,
batendo à porta de uma casa vazia,
abandonada.
Julgo que empurraram a porta,
apenas escorada,
e adentraram a casa deserta
onde buscaram descanso,
peregrinas extenuadas,
na casa silenciosa
onde não havia pão
nem água.

Você me disse que as palavras me habitavam.
Talvez, convenhamos.
Julgo que procuram descanso apenas,
andarilhas fatigadas,
numa casa vazia,
abandonada.
E chegam às vezes clandestinas,
fugindo da polícia,
para esconder-se da luz do dia
na casa vazia, abandonada,
à espera das trevas da noite
por onde seguem em fuga
dissimuladas.

GRANDES E PEQUENOS

Há os poemas grandes e belos,
polissêmicos,
configurando sinfonias do pensamento.
Há os pequenos poemas,
nervosos,
oligossêmicos,
chocando-se desesperados
contra as grades do prosaico.

Se cantam em liberdade os pássaros,
pousados nos galhos mais altos
ou tecendo guirlandas no ar,
também canta o passarinho
aprisionado na gaiola do alpendre.

POESIA

A palavra é maior do que o fato.
A palavra rompe o fato
feito borboleta rompendo o casulo.

VIDENTE

Faz das palavras tochas
alumbrando os espelhos do tempo.

Quem dispõe cartas sobre a mesa,
quem joga búzios,
quem lê nos astros ou nas mãos,
não vê tanto como ele.

O POETA

"Minha pátria é minha língua"
Fernando Pessoa


Não serás embalsamado
e enterrado em pirâmide
feito os faraós.
Como as ondas na praia
e as estrelas no fundo da noite,
serás movimento e luz
nas palavras de tua língua.

PERSEU

Os versos
“asas nos pés.

As estrofes
"espelho no peito.

O poema
"cinta brilhando na fronte.

PERSEU

Os versos
“asas nos pés.

As estrofes
"espelho no peito.

O poema
"cinta brilhando na fronte.

METADE

Trago uma metade apenas em mim.
Do que fiquei na outra metade,
me perdi.
Na metade que trago me espero
do labirinto onde me esqueci.

Quisera dizer mais,
garanto,
encontrar as palavras
que pudessem me conduzir no labirinto
como o fio de Ariadne.
Mas falta a metade na língua
também.

CALANDO NA MEMÓRIA

Gostaria de dizer o que eles diziam
- palavras desabrochando como flores ao sol
nos pequenos jardins suburbanos.
Mas não possuía a semente daquelas palavras,
não possuía.
E em sua garganta a tristeza calava
e doía.

ALGO

Algo desmorona no teu rosto.
Algo escurece nos teus olhos.
Algo que o sorriso já não pode erguer
nem iluminar.

Algo pesa em teu pescoço.
Algo invade as tuas noites.
Algo que o sono já não pode esquecer
nem espantar.

Algo espreita em tua pele.
Algo silencia em teus ossos.
Algo que o vento já não pode varrer
nem cantar.

Algo foge de tuas mãos.
Algo se parte no teu desejo.
Algo que a palavra já não pode reter
nem atravessar.

Algo naufraga em teu sangue.
Algo peca em tua carne.
Algo que Deus já não pode socorrer
nem perdoar.

Algo se desfaz.
Algo dói.
Algo que o sol já não pode refazer
nem aliviar.

DÁDIVA

Trazia palavras do mundo
quando voltava para casa
como trazia o gatinho abandonado
ou a mangueira brotando no caroço.

E as palavras que trazia
instalavam-se no repertório
do meu silêncio
feito o gatinho dentro de casa
ou a mangueira no quintal.

ÁLBUM DE FAMÍLIA

Sentados no degrau do terraço
que dava para o jardim,
a mãe do menino,
entre a irmã e o irmão mais velhos do menino,
com o irmão mais novo do menino no colo.
Um pouco mais afastado, o menino,
como se não o tivessem convidado para a fotografia,
como se o flash o tivesse apanhado ao acaso,
cobrindo uma distância que não deveria cobrir.

SACRILÉGIO

Quando o irmão mais velho investiu contra ele,
segurou o irmão mais velho nos braços
e o levantou acima do chão
e mostrou que era o mais forte.
Logo afrouxou os braços, porém,
e deixou que o irmão caísse a seus pés
e não esboçou nenhum gesto depois.
A raiva que sentira não podia ir adiante,
não podia,
e chocava-se contra uma tristeza
dentro dele.
Provar que era o mais forte
já era um sacrilégio.
(Por que os deuses não podem deixar
que os humanos possam amá-los?
Como são cruéis os deuses
quando obrigam os humanos
a ferir o amor dentro deles!)

NO LAPSO INFINITO DA AUSÊNCIA

- Apareça lá em casa,
Apareça mesmo, cara.

Não apareci, não fui lá.
Não sei se iria ainda hoje
se ele não tivesse ido embora.
Não sei se ele seria o que é hoje,
não sei se eu seria o que sou hoje,
se ele não tivesse ido embora.

Sei que está diferente, hoje.
(Não vê-lo me faz vê-lo assim,
cada dia que passa.)
E vê-lo diferente me faz diferente,
também,
como se ele me visse, também,
no lapso infinito da ausência,
e pudéssemos nos reconstruir
mutuamente.

No lapso infinito da ausência
hei de aparecer lá
onde nunca estive,
onde ele nunca me esperou.
E cerziremos em silêncio
os farrapos de nossas sombras.

DIA DAS MÃES

A empregada estava disponível,
mas a dona-de-casa insistia
(apesar dos protestos)
em não sentar-se à mesa
e em servir aos comensais
numa solicitude exagerada.

Não sentar-se à mesa
como quem afirma:
- Não faço parte,
não pertenço.

PROTEÇÃO

Era preciso proteger do mundo
aquela mulher tão ingênua,
antecipar-se a tudo,
mantê-la feito uma criança
como na história das meninas chinesas
- os pezinhos apertados em sapatos de ferro
para que não pudessem crescer.

FURTA-COR

Circulava tão ambígua,
tão ambígua,
com o álibi da fragilidade.
(Ai, a culpa de se revoltar contra os crimes
de alguém tão frágil!)

As palavras se desdiziam,
atraiçoavam-se mutuamente,
mentiam-se sem escrúpulos
em sua boca.
E o furta-cor entrava pelos olhos,
pelos ouvidos
da vítima e da testemunha
de seus crimes.
E sua loucura enlouquecia a vítima
e a testemunha
de seus crimes.

Furta-cor, ambígua...
Em sua língua cambiante
se entrelaçavam cruelmente
o sim e o não.
Onde terminaria a loucura,
onde começaria a crueldade?
Ou estaria na loucura a crueldade
como o furta-cor de sua língua?!

OSSUÁRIO

A sentença implacável
a espreitar na biologia...
E a indignação de vê-lo fraco.
A mudez da indignação de vê-lo fraco.

Não havia palavra
que pudesse enfrentar o silêncio,
que pudesse arrancar com as raízes,
inteira (raízes, caule, folhas)
a planta daquela mudez.
E quando puxava,
vinham algumas folhas apenas,
despedaçadas nas mãos.

A poesia ficava suspensa nas mãos,
nas folhas despedaçadas.
Um pássaro se imobilizava no vôo
e a maré vazante expunha o ossuário de corais.

PEIXES CEGOS

Coisas que eu conversava com você.
E agora que você já não está,
uma parte de mim cala.

Agora que você já não está,
uma parte de mim foi banida
para o país do silêncio,
uma parte feito um judeu errante
que não encontra abrigo.

Sou menor agora.
Agora calo mais
e lá fora é maior a sombra do medo.
Dentro de mim,
bem no fundo,
palavras se recolhem
feito peixes cegos.

TANTAS PERGUNTAS

Tantas perguntas a fazer,
Tantas perguntas...
Mas o tempo das perguntas já passou.
As perguntas perderam a língua
e já não sabem perguntar.
E percorrerão o silêncio feito peregrinas,
condenadas a nunca descansar.

Tantas perguntas a fazer.
Tantas perguntas...
Mas o tempo das perguntas já passou.
Pudessem falar as perguntas,
só o vento, o mar e o silêncio
as poderiam escutar.

Tantas perguntas a fazer.
Tantas perguntas...
Mas o tempo das perguntas já passou.
E o homem a pedir ao menino
que vai saltitando ao seu lado
Não dá pra perguntar?
Não dá pra perguntar?
Mas o menino que vai saltitando ao seu lado
só escuta o silêncio, o vento e o mar.

Tantas perguntas a fazer,
Tantas perguntas...
Mas o tempo das perguntas já passou.
Pergunta então aos mortos.
E eles talvez saberão responder
feito folhas ao vento
Por que não soubeste perguntar?
Por que não soubeste perguntar?

(Ai, quantas palavras à espera das respostas
das perguntas
feito os filhotes da ave morta
abandonados no ninho.)

O GALO

Pela mentira e pelo medo,
impôs-se naquele pequeno grupo
de pessoas fracas e crédulas.
Quem ousava duvidar, silenciava,
esquecia.
Naquele pequeno grupo
encontrou a fragilidade
e a credulidade convenientes
para que pudesse se impor
como o galo no terreiro.

Ao invés da razão,
a violência.
Ao invés do diálogo,
o grito.
Tendo como retaguarda
a violência e o grito,
era-lhe fácil desenvolver sem escrúpulos
a esperteza
como quem rouba o doce
de uma criança.

Naquele pequeno grupo
de pessoas fracas e crédulas,
desenvolveu ao máximo o seu talento
de explorador e mentiroso.
E quando empertigado
aumentava o tom da voz
ríspido e ameaçador,
era como se fosse um galo
no terreiro.

SELEÇÃO NATURAL

"Man hands on misery to man"
Philip Larkin


Aquela palavra muda,
assobio silencioso de um gavião
peneirando no tempo.

Aquele sussurro fatídico
tangendo inexoravelmente.
E iam caindo, caindo
feito as espécies
que a seleção natural vai extinguindo.

A SEMENTE

Você percebe que são degenerados,
que havia uma semente que traziam consigo
e que não puderam não ser degenerados,
que não puderam querer.
Você percebe que vão desmoronando
feito pequenos castelos de areia
que as ondas solapam na praia.
Você percebe e você sabe que não pode fazer nada
e você é triste porque não pode fazer nada,
você que imagina ter podido querer.

Mas a semente está em você também
de algum modo,
mesmo que você imagine ter podido querer.
Está em você também a semente,
ainda que de outro modo.
Você que se imaginou liberto,
que imaginou ter escapado
do novelo de nós cegos.
Você talvez não saiba (ou finja não saber)
que a semente também cresce de outras formas.

A semente cresce em você também
de outra forma
e há uma seleção natural, você sabe,
e você está sozinho, muito sozinho,
frágil e vulnerável.
Inútil agarrar-se às palavras
como quem se agarra aos ramos tão delicados
que se debruçam sobre a correnteza.

O CÁLICE

Estar entre eles,
pensar neles
é como tomar veneno.
Mas digo não,
não quero,
não quero beber esse cálice.

Digo não.
(A vida grita.)
É preciso seguir
(a vida pede)
em busca da distância
e do esquecimento.

Só ao Cristo cabe pedir resignado:
- Afasta de mim esse cálice.
Humano o bastante para não pedir resignado,
afasto-me do cálice.

FEITO UM NAZISTA

Você lembra das vezes
em que você cometeu injustiça tamanha
- covarde, cruel e hipócrita
feito um nazista...
Você quer ser um homem bom
e faz por merecê-lo,
convenhamos,
mas não foi outro homem
que foi covarde, cruel e hipócrita
feito um nazista.
Foi você
que foi covarde, cruel e hipócrita
feito um nazista.

Sua bondade quer ser uma árvore
sob o sol a pino
- sem sombra.
E como dói, por vezes, uma lembrança
fazendo inclinar o sol acima de sua bondade.

TARDIA

Todo esse egoísmo, Senhor,
toda essa indiferença
atravessando as gerações.
Todo esse veneno
infiltrando-se lentamente nos corações.
Todo o sentimento vil
plasmando, plasmando,
configurando o rosto do monstro.

E, de repente, Senhor,
esse espanto, essa agonia
de quem enfrenta um espelho,
já tão tarde, tão tarde,
e essa bondade desesperada
de quem busca lavar as mãos
do pecado original.

Por que só agora, Senhor,
já tão tarde, tão tarde,
essa luz súbita feito o clarão
na estrada de Damasco?
Por que só agora, Senhor,
quando não é a estrada de Damasco,
quando o homem não é santo,
quando é pequeno o homem
para levantar-se do tempo da ignomínia?

Por que só agora
quando nenhum gemia se dispõe
e a palavra do homem é fraca
e o futuro se encolhe, Senhor,
cativo do tempo da ignomínia?

As vítimas dos crimes clamam,
Senhor,
como as ondas na praia
e as bondades tardias são como folhas mortas.

MENINO BONITO

Aquela fotografia na velha carteira de identidade.
Aquela fotografia de um menino bonito
que você mandou ampliar
e colocou num porta-retrato sobre a mesa.
Aquele menino bonito emergindo silencioso e sério
da escuridão do tempo,
aquele menino em cujo silêncio você imagina
ter penetrado um dia.

Mas você teria conhecido aquele menino bonito
num porta-retrato sobre a mesa?
Teria ao menos encontrado com ele algumas vezes
na escuridão do tempo de onde emerge
silencioso e sério?
Teria alguém conhecido ou visto algum dia
aquele menino?
Ou teria circulado esgueirando-se
clandestino, invisível e mudo
num labirinto aquele menino?

Aquele menino bonito na fotografia,
silencioso e sério,
reclama de não ter existido.

AMOR E DOR

Evitando a rima fatídica.
Evitando a palavra, antes da rima.
Faz como fez Odisseu aos marujos,
tapa os ouvidos.

É uma dor a menos.
Mas as palavras se querem todas
e por vezes sonham acordadas
feito donzelas
e por vezes correm até a beira do cais
feito loucas.

As palavras se querem todas
e se buscam enluaradas
e não têm nada a ver
com os preconceitos da razão.
A dor a menos
é uma dor a mais.

VAPOR

Ali onde você busca
o seu corpo de centauro perdido.
Ali onde você se choca contra você mesmo
como quem se joga contra um espelho,
ferindo-se nos estilhaços do vidro despedaçado.

Ali onde você, como Tântalo,
faz a ronda incansável do desejo.
Ali de onde você emerge,
tão fragilmente humano,
arrastando sua sombra de centauro ferido.

PIGMALIÃO

Direi junto ao teu rosto,
à tua nuca,
ao teu ouvido.
Direi como quem deixa cair a semente
e espera que a planta cresça
na pele,
nos olhos,
na língua.

Direi feito Deus
- sopro da palavra no barro.
Direi feito Adão
- metamorfose da carne da palavra.
Direi a palavra lânguida,
molhada,
deslizando sinuosa
feito a serpente no Paraíso.

JURAS

Por alguns minutos
te amarei loucamente
- do instante em que alçar vôo
o pássaro
até quanto cair abatido.

E as palavras das juras
escorregarão na saliva
depois
trôpegas e sonolentas
feito putas bêbadas.

MAIS PEQUENO

Existe o mundo mais grande.
Existe o mar e a lua imensa.
Existe o sexo, o sonho e as paixões.
Existe a injustiça, a miséria e a brutalidade.
E a alegria, apesar de tudo.
Existem as risadas e os gritos.
Existe o mundo onde as crianças correm
e soltam pipas
e os homens se matam.
Existe o mundo mais grande
onde as palavras voam feito pássaros.

Mas existe o mundo mais pequeno
onde homens mais pequenos
erguem seus bastiões de ressentimento
e espreitam feito ratazanas
nos espaços estreitos e sufocados.
Existe o mundo mais pequeno
onde a palavra se recolhe num canto
arrastando-se
feito pássaro de asa ferida.

PROVÍNCIA

Confeitinhos adoçando a língua,
trocados boca-a-boca.
Quantas palavras edulcoradas
no pequeno altar das vaidades.

Fel revolvendo-se no estômago,
regurgitado e deglutido.
A amargura travando os lábios
e acendendo lampejos de ódio
nos olhos.

Lana caprina
na balança do destino.

BOLHAS DE SABÃO

Cacoetes demais,
Talento de menos.
E quando o discernimento espreitava
era feito uma acidez
queimando por dentro.

E imaginavam-se gênios incompreendidos.
E pronunciavam frases de efeito
que se desfaziam ao vento
como bolhas de sabão.

SEGUNDA PELE

Tudo era muito difícil.
E muitas vezes tiveste que furar o caminho
para subir
como nas vezes em que não pagavas o ônibus,
enganando o cobrador.

Tudo era muito difícil.
E aprendeste a grudar
feito ostra na cerca submersa
como nas vezes em que demoravas
de propósito
na casa de amigos
para pegar o jantar.

Tudo foi muito difícil...
E quando chegaste mais em cima
essas pequenas estratégias
já faziam parte de ti
feito uma segunda pele.
O passado cravara as garras
em tua sombra
e te acompanhava o fantasma
de uma vingança retroativa e silenciosa
que te dava o direito de querer retomar
o que teriam roubado de ti.

Furar ou grudar,
os verbos fazendo-se cúmplices
de teus movimentos de hoje.
E, de repente,
nas situações mais diversas
era como se estivesses no ônibus
sem dinheiro
ou na casa de amigos
com fome.

FERIDA NARCÍSICA

Cruzara com uma sombra.
E pisara, sem querer, uma dor antiga.

Inútil calar-se, agora.
As palavras ditas já tinham aderido
ao silêncio.
Estar ao lado, agora,
ainda que mudo,
era como uma rocha ferindo o escuro,
iluminando o espelho da Medusa.

Desencadeara-se o moto-perpétuo da agonia.
Não se cruza com uma sombra impunemente.

RÉU

Quando o inquisidor se dirigir a ti, amigo,
ai de ti, amigo.
O inquisidor tem a obsessão dos virtuosos
e fareja feito um lobo faminto.
Será inútil te esconderes no teu silêncio.
O inquisidor lê o tartamudeio do medo
no pensamento
e decifra o código silencioso das transgressões.
O inquisidor vai te buscar no teu silêncio
onde tuas palavras se abrigam assustadas
feito ovelhas quando o lobo cerca o redil.
O inquisidor invade o teu silêncio
feito o lobo no redil.

O inquisidor é virtuoso.
O inquisidor sabe.
O inquisidor pode.
Que solidão a tua, amigo,
quando o inquisidor se dirigir a ti.

TODAS AS RAZÕES

Viajam agora
nos vagões de luxo do trem da História,
tomando uísque com inimigos de ontem,
comendo caviar com eles.
E já não lembram
que viajavam dependurados
nos vagões sujos e superlotados.
E já não lembram
que fediam.

Têm razões
que justificam tudo.
Sabem construir razões.
Têm todas as razões,
menos a razão silenciosa
do cintilar das estrelas
desterradas do tempo da História.

EM NOME DE UMA CAUSA

"Nenhuma garantia de posse
é mais segura do que a ruína"
Maquiavel, "O Príncipe"

Nos labirintos da grande máquina
alonga-se a sombra dos alcagüetes.

Uma idéia resgata o pesadelo dos carrascos.
(Se existe uma idéia, tudo é permitido.)
E as metáforas vão suar sangue.

LOUVAÇÃO E POESIA

Os vencedores receberão as loas
dos louvadores.
Os vencedores não precisam dos poetas.
Os poetas não saberão fazer loas
para os vencedores.

Os vencedores serão embalsamados
e enterrados em pirâmides
feito os faraós.

ORAÇÃO DO DEMAGOGO

Bendita a condição
que faz dos homens bichos.
Bendita seja essa mina,
essa reserva inesgotável,
esse veio aurífero do poder e da glória.

Bendita a condição
que faz dos homens bichos
- cães que lambem as minhas mãos
e que açodo contra os meus inimigos.

O DELATOR

Já sabia as respostas
das perguntas que me faria,
mas era preciso ouvi-Ias da minha boca.
E perguntou como quem oferece
uma maçã envenenada.

GENTILEZA

Perguntava sempre pelo moribundo.
Foi ao enterro,
à missa de sétimo-dia.
Como era prazeroso ser tão gentil.

EQUUS

Exame físico num recrutamento militar.
Um rapaz encolhendo-se num canto da parede
- nu entre outros jovens nus.
Ah, pudesse o rapaz ter arrancado os olhos
do potro selvagem.
Pudesse ter esfaqueado o potro
e não jazer ali,
pisoteado pelo animal indomável
- pétalas alvas de jasmim nas coxas,
pétalas de cravo rubro no coração.

CINZEL

A vaidade do príncipe,
a vaidade do papa.
(Tudo são vaidades.)
A vaidade do príncipe,
a vaidade do papa.
E a pedra cinzelada.

Mas não é o príncipe,
não é o papa
que estão na pedra cinzelada.
É a mão invisível do artista
que está na pedra cinzelada.

PENÉLOPE

A noite desfaz as promessas.
A noite é o reino do que se cala.
A noite é o ardil do silêncio.
Toda a luz do dia para iludir
e a escuridão da noite para desfazer
a ilusão.

BRUNO TOLENTINO (“A IMITAÇÃO DO AMANHECER”)

Através dos sonetos serpenteia o grande rio.
Em sua língua de água, os filósofos
e as mitologias.
Em seus cabelos de prata, a coroa de ferro da História
e a guirlanda de flores da poesia.

Corre através dos sonetos o grande rio
para entregar,
escorrendo entre os dedos da mão aberta,
a imitação da aurora ao cais de Alexandria.

AO POETA WALT WHITMAN

Não dá pra idealizar,
poeta,
não dá.
Se vias purezas no que é rude,
inocência e beleza, apenas,
enxergavas, talvez, o que querias enxergar.

Não dá pra idealizar,
bardo de um mundo novo,
de uma idéia, de um sonho
que teus versos queriam celebrar.
Há um lado escuro no coração do homem
que Dostoiévski e Freud iriam depois apontar.
Há um lado escuro em todos,
no homem rude inclusive,
que os demagogos, os ditadores e os tiranos
souberam depois explorar.
Há algo que só é visto de perto,
poeta da inocência,
misteriosa semente oculta
que pode romper a casca e germinar.

Feito o ovo de uma serpente,
há algo recôndito nas multidões,
cantor da beleza pura,
que não podias sequer imaginar.

Não sabias, poeta,
que tudo poderia traduzir-se um dia
em rancor e vulgaridade.

HERMAN MELVILLE

Com a Bíblia na mão,
entre homens rudes do mar,
saberei ler a inocência da bondade
e da beleza,
a inteligência do ódio e do mal
e a ferida interna
que não cicatriza nunca
da espera dolorosa do Leviatã.

Com a Bíblia na mão,
entre homens rudes do mar,
saberei ler a parábola do homem.

EMILY DICKNSON

Cansada de escrever para os homens
sem obter resposta,
passou a escrever para Deus.
E Deus lhe respondia
e vinha visitá-la em sua casa
e liam juntos a Bíblia e Shakespeare.
E altercavam em diálogos socráticos.

Só a prudência das metáforas
ponderava a intimidade.
Não havia medo,
nem angústia,
nem culpa,
diante dEle.

PAI

Estremeci de medo...
Sua voz nos repreendendo
na sala
e o xixi ziguezagueando no chão
quando corri assustada
para debaixo da mesa.
Mas como era belo aquele homem
- a solidão dos olhos verdes
feito ave de arribação perdida.
(Perdoa-me, minha mãe!
Perdoai-me, minhas irmãs!)

Estremeci de medo...
Ele de braço erguido ameaçador
e minha mãe ciumenta, traída,
a acha de lenha na mão.
Fechei os olhos, tapei os ouvidos.
Mas como era belo aquele homem
- a solidão dos olhos verdes
feito ave de arribação perdida.
(Perdoa-me, minha mãe!
Perdoai-me, minhas irmãs!)

Estremeci de medo...
Queridinha do papai,
me disse minha irmã.
Deitada na cama à noite,
olhar fixo nas telhas e nos caibros,
um ar gelado percorreu o meu coração.
Mas como era belo aquele homem
- a solidão dos olhos verdes
feito ave de arribação perdida.
(Perdoa-me, minha mãe!
Perdoai-me, minhas irmãs!)

MÃE

Tão branca a minha mãe,
rosada, pele de cetim...
Por que ele tinha que procurar uma cabocla?

Tão branca a minha mãe,
rosada, pele de cetim...
Por que ele tinha que procurar uma cabocla
e gostar mais de mim
do que de minhas irmãs?

Tão branca a minha mãe,
rosada, pele de cetim...
E um caranguejo cravando as pinças
no coração de minha mãe.

Ai, que desnaturada serei, minha mãe,
que em meu peito não existe o caranguejo
cravando as pinças, minha mãe.

IRMÃ MAIS VELHA

Saiu de casa muito cedo,
quase menina ainda.
Levou como dote de casamento
uma pedra no coração.

IRMÃO

Quando meu pai o mandou para longe,
ai, como ele chorou.
A noite inteira escutei o seu choro
no quarto ao lado.
E quando me enviou a fotografia
com a dedicatória,
já se tornavam mais altas as vozes
que o acompanhavam feito um sussurro.
Tornaram-se de repente tão altas
que perdia o prumo do silêncio.

E quando retomou,
dissemos que tinha uma mancha
no pulmão.
(A gente tinha que dizer alguma coisa
naquela cidadezinha.)
As vozes já tinham baixado
e eram apenas um sussurro
como antes.
Mas era como se o menino tivesse morrido.
No seu silêncio havia, agora, um espantalho
de rudeza e violência.

IRMÃ MAIS NOVA

Irmãzinha, querida irmãzinha,
quase da minha idade.
Peço desculpa, irmãzinha,
porque disseram um dia
que eu era a mais bonita,
porque sempre fui muito frágil
e a queridinha do papai.
(Irmãzinha, querida irmãzinha,
farei como se não percebesse
o teu risinho dissimulado
quando me ensinares a letra errada,
irmãzinha, da canção da moda.)

Irmãzinha, querida irmãzinha,
quase da minha idade.
uma vida é muito pouco,
irmãzinha,
para expiar minha culpa
diante de ti.

E O VENTO LEVOU

Quando saí do cinema
- laço preso no cabelo,
cintura delgada,
vestido de organdi ­-
me disseram que eu parecia
com a atriz Vivien Leigh.

MELANCOLIA

Ai, a tristeza. Ai, a tristeza
que vive escondida
no silêncio do porão.
(Ai, a tristeza. Ai, a tristeza
que vem pra lembrar da menina
encolhida debaixo da mesa.)

Ai, a tristeza. Ai, a tristeza
que vem pra lembrar do medo
a gelar o coração.

Ai, a tristeza. Ai, a tristeza
que chega como desconhecida
trazida por outras mãos.

Ai, a tristeza. Ai, a tristeza
que vem ocupar o lugar
de quem me abandona o coração.

MANSIDÃO

Ele não é violento
como meu pai.
É um homem manso.
Não tem o encanto
que vi em outros rapazes.
Não é o homem
que eu sempre quis.
Mas ele me disse
que posso ser feliz.
Sua palavra é bálsamo
para a melancolia.
E me ofereceu seus braços
como abrigo.

FELICIDADE

Uma casa modesta alugada,
os móveis da cozinha
feitos de caixão.
No fim da tarde, as cigarras cantam
no parque em frente da casa
enquanto espero por ele no portão.
Desce pelo outro lado do bonde
às vezes
e me surpreende com um beijo.
É tênue o canto das cigarras...

REBENTOS

Há filhos em que vejo
o rosto do meu pai.
Há filhos de quem gosto menos.
Há filhos de quem gosto mais.

A ESTUFA

Ele sempre soube
que a loucura não fora por ele
não.
Ele sempre soube
- mesmo não querendo saber ­–
dos riscos silenciosos
do amor gratidão.

Ele sempre soube
que nos olhos da mulher
- fogo de monturo no chão ­–
brilha ardente por vezes
a lembrança de uma paixão.

Ele sempre soube.
Por isso me trouxe assim
feito flor encarcerada
na estufa do seu medo.

SONHOS

Presa numa redoma de vidro,
como poderia sonhar
os sonhos que eram meus?
Os sonhos que eram meus
quis sonhá-las em outros corações
como quem enxerta o broto
de uma planta
em outra planta.

Presa numa redoma de vidro...
E os sonhos que eram meus
não vingaram em outros corações
feito o enxerto da planta que não pegou.

Presa numa redoma de vidro.
Os olhos vazios
e os brotos de sonho enxertados
mirrando, inexoravelmente.
(Ai, que terrível traição!)

ESPELHO

Porque não tinham asas
para voar com os meus sonhos,
partiram o espelho da minha máscara.
Agora é mais fácil
ter apenas o meu rosto
que sempre esteve presente
espreitando por trás do espelho,
prenunciando tudo,
aguardando tudo.

Agora é mais fácil
ter apenas o meu rosto
e voltar para eles a indiferença
dos meus olhos cegos.

O GAVIÃO

Sou a que não é.
O passarinho no viveiro
e a sombra do gavião.
(Basta que minhas irmãs se aproximem,
basta que me lembre delas
e o gavião sobrevoa
o viveiro do passarinho.
Basta que me lembre delas
carinhosamente.)

Era preciso que estivessem muito longe,
muito longe,
aquém do pensamento,
para que eu pudesse escutar
a canção do passarinho...
Mas como me compraz,
como me compraz
o assovio do gavião.

Poderia sentar-me com calma
e escutar o canto do passarinho.
Poderia. E, às vezes, escuto
quando me esqueço.
Mas o assovio do gavião,
o assovio do gavião...
Ai, as duas harpias
bicando carinhosamente
o meu coração.

Sou a que não é.
E todo o mal emana
do furta-cor das minhas palavras
cravando-se feito anzóis
(O furta-cor das minhas palavras
rasgando os peitos infantis
como se fossem anzóis.)

Sou a que não é.
Minhas mãos fazem carinhos
de sombras
e o leite seca no meu seio,
virando água rala.
Sou a que não pode ser.
Sou a sentença do não ser.

HARPIAS

Minhas irmãs, pedaços de mim,
do mesmo barro de onde vim.
Ofereço o meu coração
às garras e ao bico de vosso amor

FLORES

Cada fracasso dos meus rebentos
será como uma flor
que recolho para o buquê
que ofertarei às minhas irmãs.
A dor que é deles não me importa.
Há uma dor mais antiga,
uma dor que é só minha
e que é preciso aplacar.

AS VIÚVAS

Viúva, antes de ele morrer,
já vou arrumando as malas
para a volta ao lar.

Viúva, antes de ele morrer,
feito minha mãe,
feito minhas irmãs.
(Ele não era meu pai
e tenho uma dívida a pagar
com a amargura de minha mãe.)

VOLTA AO LAR

Volto, viúva, para a casa de minha irmã.
Volto para o meu lar
de onde nunca deveria ter saído.
Deixo a memória de meu marido
que nunca substituiu a memória
de meu pai.
Deixo os filhos
que estiveram no meu ventre,
mas que nunca foram meus.

Volto para a casa de minha irmã.
Volto para o meu lar,
para a minha gente.
Volto como se nunca tivesse casado,
como se nunca tivesse gerado filhos,
como se a virgindade se restaurasse
em mim.

1/03/2009

Maurício de Macedo: compulsão por poesia


Roberto Amorim

17/12/2007 Tudo na Hora


Autor de 17 livros publicados, poeta diz que a atual crítica da literatura alagoana está contaminada pela “cumplicidade da mentira”


Nos últimos anos, o poeta Maurício de Macedo decidiu romper com a tradição dos barulhentos coquetéis de lançamento. Seu ritual agora é silencioso e simples: depois do livro pronto, envia exemplares para amigos e escritores como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant´Ana. Gente que ele tem certeza que irá ler os versos saídos da sua mente compulsiva pelo ato de fabricar poesia.
É como se não conseguisse respirar direito sem o contato diário e direto com as palavras e suas infinitas possibilidades de criação. Uma espécie de dispnéia crônica. E “Dispnéia” é justamente o título do seu 18º livro de poesia, que já está pronto. A estréia oficial foi em 1996, com “Cinzel da Língua”. É uma média de quase duas publicações por ano.
“A poesia esteve presente ou foi responsável por todos os momentos dialéticos da minha vida. É uma questão de sobrevivência, eu escrevo para continuar vivendo”, confessa Maurício, enquanto dá uma pausa na leitura da biografia do poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892).
Até pouco tempo atrás, essa intensa produção vinha somente da história (Escorial do Açúcar) e da cultura popular de Alagoas (As Aventuras da Negra Fulô). Mas, com “Fragmento”, publicado esse ano, a poesia de Maurício de Macedo fica mais intimista, autobiográfica. Em “Dispnéia” esse movimento se aprofunda e externa a infância, os dramas familiares e existenciais do poeta.
“O autor não consegue fugir dele mesmo já que o tempo da poesia não é histórico. A memória é autônoma e dita os temas, quase sempre dolorosos. Mas a dor é mola da arte, e o artista não pode escapar dessa sina”.

Dinheiro e crítica

Único financiador dos próprios livros, o médico de profissão diz que é movido pela certeza do leitor anônimo. Não lhe traz incômodo não ter ganho nenhum dinheiro com sua poesia. “O essencial é tirar as palavras da gaveta e deixá-las ao alcance de quem quiser”.
Também não está interessado no que dizem dos seus livros no blindado circuito acadêmico. Ele garante que não quer competir, ser aceito ou ter qualquer outro reconhecimento se não dos leitores.
Para Maurício, a crítica isenta e sóbria há muito deixou de ser praticada pelos mestres e doutores da Universidade Federal de Alagoas. “Existe, na verdade, um provincianismo maldoso com poder inquisitório no qual impera a cumplicidade da mentira. Eles elegem algumas celebridades e começam a delirar ao redor delas. Não quero me tornar refém desse jogo”.
E sentencia o próprio destino: “Prefiro ficar quieto no meu canto, lendo, escrevendo, escrevendo e lendo....”

1/02/2009

Escorial do Açúcar: Notas de Leitura

Roberto Motta
Doutor em Antropologia e professor da UFPE

Com que finalidade um antropólogo ou sociólogo, que não é poeta nem crítico de poesia, ousa comentar um livro de poemas? A resposta só pode ser uma. O cientista social comenta, nesses poemas, aquilo que pertence ao domínio da ciência social. Sem que os dois campos se confundam, o poeta descobre sua matéria na sociedade, na cultura e na história, e, do mesmo modo, o cientista social e o historiador vão descobrir seu material na matéria do poema, mas sempre se situando aquém daquilo que constitui a essência da poesia, que outra coisa não parece ser a esse comentador que a transfiguração estética do mundo - mesmo quando o mundo é feio, penetrado pelo mal e pela injustiça -, a apreensão do existente em termos de eternidade, daquilo que "se vai da lei da morte libertando". E terá sido por isso que Aristóteles, que, entre outras coisas, era fino crítico literário e autor de uma teoria muito refinada da criação poética, dizia haver mais verdade na poesia do que na história, que, no seu vocabulário, correspondia ao que hoje entendemos por ciência social.
Quando então eu, como antropólogo, me volto para O Escorial do Açúcar, de Maurício de Macedo, creio que vou descobrindo, transformadas em poesia, algumas características centrais de nossa civilização, bem como do ângulo psicológico através do qual o autor a apreende, não ficando aliás excluído que, nesse jogo de espelhos, entrem também algumas características do leitor-comentador. E sem mais prolegômenos, passemos à enumeração dessas características. Há, para começar, uma descrição transfigurada da sociedade alagoana - de uma sociedade arcaica, uma sociedade que data do tempo em que el­rei Dom Felipe II fez construir o Escorial, mas que ainda está mais presente do que nunca. Uma sociedade cheia de desigualdades sociais e raciais. Uma sociedade baseada no poder e na submissão, no sadismo de uns e no masoquismo de outros.
Já começamos a estar próximos de certas formulações de Gilberto Freyre, tendo aliás este Escorial muita coisa que é um diálogo implícito com a Casa­Grande de Gilberto Freyre. Mas não tão implícito que impeça o autor pernambucano de vir citado em epígrafe, de maneira talvez um tanto irônica: "Nenhum cristianismo mais humano e mais lírico do que o português", Vamos também notar que a temática do sexo penetra praticamente cada verso de Maurício. É a "escuridão do desregramento da carne e do silêncio de Deus", São as "tentações do mundo" que "mais fortes se hão de tornar: com tanta negra e índia podem os frades não pecar?". E, junto ao sexo, a culpa, menos explicitamente declarada, mas penetrando também o livro inteiro.
Penso entretanto que Maurício não está só dialogando com Gilberto Freyre. Há alguma coisa de Freud e até de Ingmar Bergman na temática constante dos poemas e portanto - este comentador agora se dispondo a fazer um afirmação muito arriscada -, o universo de Maurício não é mais simplesmente (apesar da epígrafe) o de Gilberto Freyre e do catolicismo lírico dos lusos-brasileiros, mas contém forte infusão do protestantismo associado à chamada "modernidade". Já não se trata da naturalidade com que se pratica o sexo em Casa­Grande & Senzala ou mesmo em Essa Nega Fulô, de Jorge de Lima. Maurício de Macedo acrescenta a seus predecessores, de acordo com minha percepção (mas eu nasci protestante), a angústia calvinista. Ele pertence a outro tempo. Há em Maurício alguma coisa da preocupação com as raízes do Brasil e com a "negação" dessas raízes, que se encontra em Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo na interpretação que, do autor paulista, faz outro autor paulista: o Professor Antônio Cândido.
A filosofia da história é vício profissional deste comentador. Não creio entretanto que eu simplesmente a projete sobre o autor dos versos. Não sei até que ponto ele foi deliberado nisto, mas em muitos trechos se encontra o contraste entre a civilização da palavra e da racionalidade, que é a civilização da modernidade (e, neste sentido, Maurício também se inscreve na linhagem de Max Weber), e a civilização da festa, da imagem, do teatro ritual e do barroco, que é a do Brasil tradicional. Considero a apresentação desses contrastes como um dos pontos mais fortes de todo o livro e dou exemplos: "Para quem não lê a Bíblia, /para quem não sabe ler, /a volúpia das formas de pedra/ e dos santos de cedro, /quase vivos, /a dizer que Deus entra pelos olhos", E, mais adiante, "O drama divino tão próximo:/os santos baixando entre os homens /Deus entrando pelos olhos e pelos ouvidos". E arremata: "As palavras são os punhais /atravessando o coração. /A palavra é luz e som, flechas sacudindo o silêncio profundo"...
Mas que o vício profissional de quem redige estas notas, querendo por toda parte descobrir ciência social, não nos iluda. Maurício está fazendo em primeiro lugar literatura e é como tal que deve ser apreciado e saboreado. Não lhe falta inclusive humor: "Nosso Senhor acolhe a todos /carinhosamente, inclusive os pequenos vendilhões /do templo", nem muitas outras sutilezas. Tantas, que eu chego até a pensar que, quando ler estas notas, Maurício vai pensar que muitas me escaparam. Registro apenas uma, no poema O Gato e o Monge: "O vulto desliza sobre o muro, salta rápido, preciso, /dirigindo-se para a porta entreaberta /da cela de Frei Manuel. /Frei Manuel não tem medo".
História, antropologia, muita psicologia, paixão, culpa, não sei se redenção, mais uma teoria inteira do barroco e das formas de pensar passam pelo livro de Maurício. E cada leitor, estou persuadido, será atingido em seu ponto fraco - ou em seu ponto forte. O autor joga muitas pedras para o ar. Não há cabeça, eu penso, nem de leitor nem de autor, que deixe de ser atingida.

Fuga

Quarenta vultos pardos seguem na estrada
entre senhores a cavalo,
senhoras em redes e liteiras
carregadas nos ombros dos negros,
meninos em carros de comboio
e soldados pagos.

Quarenta vultos pardos
entre oito mil fugitivos.
Armados de mosquetes e arcabuzes,
os índios de Felipe Camarão
seguem na retaguarda.

Quarenta vultos pardos
entre oito mil fugitivos,
que os homens bons não abandonam Deus
nem seus guardiães na terra.

Quarenta vultos pardos
entre oito mil fugitivos
que Deus não abandona os homens bons.

Bom Sucesso

Abençoamos o patíbulo e a corda.
Abençoamos a mão do carrasco.
Abençoamos a espada
que esquarteja.
De Sebastião Souto abençoamos a traição.

Amaldiçoamos a carne de Calabar
que apodrece nos quatro cantos.

Alagoa do sul

A colina suave
derramando-se sobre a alagoa do sul
e a povoação de Madalena
por cima da colina,
a salvo dos franceses
que atracam no porto do mar.

A povoação de Madalena
não-arrependida ainda.
O desregramento da carne disponível
de índias e negras
e a sífilis acusando o pecado
no sangue...

Quase nenhum homem bom
por aqui sabe ler
e a palavra de Deus
soa como língua estrangeira.
Corre solta a magia dos negros
e a selvageria dos caetés.

Por alguns meses apenas,
em recolhimento de palha,
assistiremos neste lugar.
E depois, tudo será novamente a escuridão
do desregramento da carne
e do silêncio de Deus.

Petição dos homens bons da Povoação de Madalena

O vigário, o juiz,
o procurador,
o alcaide-mor, o vereador
ao prelado-maior da vila do Marim
encarecidos vêm pedir
a caridade de lhes mandar
religiosos para aqui assistir,
como também a permissão
para um convento mandar levantar
no lugar do recolhimento
onde fugindo aos batavos
puderam os frades se abrigar.

Índios brabos para catequizar,
amasiados para casar,
magia de negro para se debelar
e tumbas para os homens bons
na casa de Deus descansar.
Como podeis ver trabalho muito
é o que não falta por cá.
O açúcar no entanto
tudo vai financiar.
Nesta terra tão boa,
engenhos moem sem parar.
Terra e escravos também
nos dispomos a ofertar.

Interregno

Por quanto tempo teremos
nesta terra que esperar
para a primeira pedra
do convento levantar.
Residir fora do claustro
nunca foi nada exemplar.
As tentações do mundo
mais fortes se hão de tornar.
Com tanta negra e índia,
podem os frades não pecar?
A sífilis não respeita o hábito
do clérigo e do secular.

As mãos de deus

Sem a soberba dos eruditos
- da vinha a perdição -,
- da matéria nos aproximamos
e temos calos nas mãos.
Na pedra, na madeira, no ferro,
o plano divino se faz
no trabalho do artesão.

A oficina da ordem é oficina de Deus.
(Rezamos também com as mãos.)
Até mulatinho e caboclo,
trabalhando como aprendiz,
sai daqui como artista cristão.

Barroco

Para quem não lê a Bíblia,
para quem não sabe ler,
a volúpia das formas da pedra
e dos santos de cedro,
quase vivos,
a dizer que Deus entra pelos olhos.

Catequese

Arrancar a língua do caeté
delicadamente
com as tenazes em brasa
da palavra de Deus.

Gramática

Os filhos dos homens bons
aprenderão a ler e a escrever.
(Não serão analfabetos como os pais.)

Que utilidade a gramática pode ter
para quem corta cana debaixo do sol
e fabrica açúcar no engenho?

Altar-mor

Madalena, cintura de vespa,
ajoelhou-se com seu vestido dourado.
Cabelos compridos, descendo nos ombros,
não ousou olhar para o alto.
Arrependida dos seus pecados,
ajoelhou-se, cintura de vespa,
os dedos deixando à mostra
do pezinho tão delgado.
(Em terra de tanto pecado,
só Madalena poderia
com seu gesto contrito e delicado
dar esperança a quem vive
na luxúria atolado.)
O patriarca de um lado,
do outro o casamenteiro.
De pés descalços, Francisco,
braços cruzados no peito
as chagas exibe das mãos.
É das chagas prosaicas da sífilis
que o povo desta alagoa
vem lhe pedir remissão.

De todos na comunidade,
Antônio é o preferido:
sobretudo das moças da terra
que não querem ficar sozinhas
sem ter homem ou marido.
Mais na frente, de cada lado,
a Virgem Maria, prestem atenção.
Do Desterro é uma delas,
a outra é da Conceição.
Engravidar e sofrer do mundo
da mulher é sina e paixão.
É Maria quem roga por ela
no silêncio de sua aflição.

Braços levantados, cabeça erguida,
distante dos rogos humanos, jaz o Cristo,
solitário na sua paixão.

Cantaria

Areia dorme prisioneira
na pedra que vem do mar.
E quando a mão cinzela a pedra
vai revelando as rendas
que o mar desenha na areia.

E a pedra contorce seu corpo,
nu ou vestido de rendas,
no Cruzeiro, na fachada,
no frontão,
na efigie de São Francisco,
nas pilastras e nos arcos.

Retábulo

Na talha dourada,
entre cachos de uva,
folhas,
acima das cariátides,
os anjinhos
que não têm sexo nem corpo.

Ai, o que não dariam esses meninos
para brincar como os outros brincam
sem a mutilação da santidade.
Ai, como é triste a bem-aventurança.

Forro (a indulgência)

Com ave-marias e padre-nossos
se redimem os pecados.
Deus é bom,
Deus é pai.

Deus acolhe sempre.
Basta que se rezem ave-marias
e padre-nossos.

Majestade cristianíssima

No arco transepto,
a coroa do rei
acima do escudo franciscano.

O padroado adverte
que Deus é menos na própria casa.

Escorial

Por escritura se garante
um lugar perto de Deus.
Aos pés do altar-mor,
por vinte e cinco arrobas de açúcar,
descansarão em paz
o senhor de engenho,
sua mulher e seus herdeiros.

No corpo da igreja,
por dois mil cruzados,
o padre, o irmão do padre
e a família do irmão do padre.
Por escritura se garante
um lugar perto de Deus,
mas em certos dias chuvosos
sobe da laje do templo
um cheiro de podridão.

Literatura

Louva-se o rei
como se louva o Pai, o Filho
e o Espírito Santo.

As letras descem do céu
para a terra
feito estrelas cadentes.
A palavra profana
tem feitio de oração.

Carregando o tigre

O negro vai levando na cabeça
o barril dos frades.
Tão cheio, quase rebentando.
(Por que será
que mesmo rezando tanto
o barril dos frades está sempre cheio
e cheirando igual
ao barril dos outros brancos?)
Será que agüenta o negro
chegar até a lagoa?
Será que agüenta?
Apressa o passo, negro,
apressa o passo
pra chegar na lagoa ligeiro
antes que o barril rebente
te cobrindo todo, negro,
da riqueza cheirosa dos brancos.

Mal português

Essas feridas em teu corpo, frade,
não são as chagas do Cristo
no corpo de São Francisco,
não são.
Essas feridas que espiam na pele
e se escondem no sangue
não são os estigmas no santo.
Mas poderiam dizer que são
se nessa terra não houvesse tantas negras
e índias semi-nuas
à tua disposição.

Cinzas

Carregando a foice,
fazendo barulho com a matraca,
surge a Morte assustadora.
Atrás da Morte, o anjo anuncia
que a vida é passageira.
Adão e Eva vêm depois,
castigados pelo Querubim
de espada de fogo na mão.
A palma do sofrimento,
os mártires do Oriente
e outro anjo, ainda,
carregando da justiça
a balança e a espada.
Andores,
inúmeros andores...
Santos de roca,
ricamente vestidos.
E fogos,
fogos e fanfarras.

O teatro ambulante de Deus
percorre as ruas,
sobe ladeiras,
dobra as esquinas...
O drama divino tão próximo:
os santos baixando entre os homens,
Deus entrando pelos olhos
e pelos ouvidos.

Sermão

No púlpito, no Largo do Convento,
a palavra é a voz,
a palavra é o gesto,
a palavra são os punhais
atravessando o coração.

A palavra é luz e som,
flechas sacudindo o silêncio profundo
do corpo e da alma do cristão.

Encontro

Desliza a serpente luminosa
e a procissão vai chegando
ao Largo do convento,
onde as negras aguardam
com seus tabuleiros enfeitados
de cocadas e pés-de-moleque.

É festa,
Nosso Senhor acolhe a todos,
carinhosamente,
inclusive os pequenos vendilhões
do templo.

Escada

Sandálias de couro pisam os degraus,
um a um...
A noite se abate sobre o convento
e o vulto pardo sobe a pedra cinzelada.
Será de pedra o seu sono,
depois do trabalho na oficina de Deus.

Não passou o tempo à toa,
lendo filosofia em latim.
As mãos redimem.
O ócio é oficina do Diabo.

Santo

Não era de sífilis
a ferida do frade
que sabia todos os ofícios
e que levitava ao rezar.

A ferida virou gangrena
na perna do frade
que era casto e humilde
e corrompeu-lhe a carne
sem que o frade precisasse pecar.

O mata-gatos

É manso e inofensivo o bicho,
caça os ratos que proliferam por aqui.
Mas há algo no seu miado,
algo no seu ronronar,
algo na sinuosidade do seu corpo
esfregando-se nas pernas da gente,
algo nos seus gritos de amor
dentro da noite...
algo que faz medo.

Como guardião do convento,
aponto a escopeta.

O gato e o monge

No silêncio da noite,
duas estrelas cortam a escuridão.
Em movimentos suaves,
o vulto desliza sobre o muro,
salta rápido, preciso,
dirigindo-se para a porta entreaberta
da cela de frei Manuel.

Frei Manuel não tem medo.

Na conversadeira

O jovem frade olhou a lagoa
no fim da tarde...
os coqueiros,
a mata subindo pelo morro,
o sol arrancando lancetas de luz
da água...
Lembrou do Tejo,
lembrou do rio da sua aldeia,
lembrou do mar tão grande
que unia e já não separava.

Mas lembrou também da água morna
no calor do trópico,
da lama entre os dedos.
Lembrou da negrinha quase nua lavando roupa na lagoa...
E, de repente,
não havia Tejo,
não havia rio da aldeia
e nenhum mar que unisse
os pedaços do seu coração.

Disputa

É próspera a comarca.
Terra de cana e engenho de açúcar.
Mas não é grande o bastante para dois.

É alto o preço
dos serviços prestados por Deus:
Terra, açúcar, escravos, dinheiro, gado...
E a comarca não é grande o bastante
para dois.

Armam-se os espíritos:
Maquiavel circula no claustro
na terra dos canaviais sem fim.
(De boas intenções o inferno está cheio.
Vença quem estiver mais perto
do rei.)

Vitória

O preço do açúcar despenca
no mercado internacional.
A Igreja se enfraquece
no regime de Pombal.
E eis que aparecem as bruxas
nesse imenso canavial.

Delações ao Santo Oficio
não nos podem fazer mal.
(Pedir à corte não basta
para afastar o rival.)
Hospício fará pouca falta.
A doença da alma é o grande mal.

Decadência

O padroado nos alimentou,
o padroado vai nos matar.
Se muda a vontade do rei,
ficamos ao Deus dará.
(E Deus dá o que o rei manda,
quem é tolo pra duvidar?!)

Parcos são os recursos,
noviços quase não há.
É a política de Pombal
que vai nos arrumar.

Quartel

O soldado deitou-se no colchão de palha do beliche
na antiga cela do convento.
E lembrou-se de Madalena,
a negrinha que lavava roupa na lagoa.
Lembrou-se da ferida no pênis
- ferida que desaparecera sem tratamento...
E quando dormiu
- sono agitado, como acontecia ultimamente -,
sonhou com a negrinha Madalena
que lhe dizia:
- Não me arrependo de nada.

Orfanato

Não tinha o osso do nariz a menina,
achatado como uma sela.
E quando brincava de pega com as outras no pátio
por vezes lhe diziam:
- Madalena, cara de macaco!
Não me pega, não me pega,
Madalena, cara de macaco!

Tempo

A canção silenciosa dos cupins
no retábulo dourado
e a resistência estóica,
solitária e orgulhosa,
do Cristo jansenista na Cruz.
A nave vazia
sob o beneplácito da Indulgência do Tempo
e as guirlandas dos morcegos
sustentando a madeira do teto
no ar.

O trio elétrico dos políticos
passa em frente ao Cruzeiro,
ferindo os ouvidos
com os mais altos decibéis.

Affonso Romano de Sant'Anna

Em correspondência ao autor, o renomado poeta comentou:

Seu livro "À sombra das palavras" me deu a alegria de descobrir um poeta que restabelece no leitor a surpresa e a magia da poesia. Comecei a lê-lo e fui em frente. Você não complica, não se dispersa, não joga para a arquibancada. Tem um sentido agudo da vida, conhece os segredos da escrita. Você bem diz: "Escrever é minha maneira de suportar". E agora que sei que você também é médico, percebo que a sua, como toda autêntica poesia, é ima maneira de "lancetar o abscesso do silêncio.

Affonso Romano de Sant'Anna

Rio. 20.07.2006.

ESCREVER

É a minha maneira de suportar.

PRENÚNCIO

A poesia pousou no papel.
Já basta.
Ainda que a ave esteja cansada,
ainda que esteja ferida
e arraste a asa sangrando na superfície branca,
já basta.

Deixa que a ave descanse
da migração tão longa
ou da ferida na asa.
Deixa,
que em breve alçará vôo do papel branco
e deixará as marcas de suas pegadas
ou filetes de sangue vivo
no desenho das palavras.

TÂNTALO

Há mistérios inacessíveis,
segredos que a língua não consegue articular.
Mas o poeta insiste,
insiste
num martírio desmedido de sede e tome
de mistérios.

DESASSOSSEGO

Há uma palavra radioativa
no fundo da noite
Há vozes de estrelas
cintilando no silêncio
Há verbos mexendo-se no quarto
feito caranguejos
Há sílabas feito pétalas
espalhadas na sala e no corredor
Há um barco extasiado e uma sereia muda
na maré dos olhos
Há ouriços do mar
tocando a pele do sono
e uma língua desconhecida ainda
que chama não sei de onde.
não sei de onde.

URGE

As palavras se agitam no peito famintas
feito cães esquecidos presos num canil.
É preciso dar comida às palavras
que se movimentam desesperadas,
famintas.
É preciso encontrar comida para as palavras
antes que devorem o peito,
a garganta,
a língua.

Urge. Urge.
E noite e dia, dia e noite,
procura-se a comida das palavras
que não dão tréguas
com seus ganidos de fome.

A BELA ADORMECIDA

Você procura um mote
como quem deseja despertar
a bela adormecida.
O beijo na palavra
e a palavra no beijo.
A língua na língua
acorda poesia e carne.

OS VISITANTES

Ao som fortuito da bossa-nova instrumental no disco,
espero os visitantes invisíveis
que mandam cartas em hieróglifos
bailando no ar
feito folhas ao vento.

Esses visitantes que são silêncio
antes de serem códigos,
que surgem quando querem
com seus rostos de esfinge
pedindo-me que os decifrem.

Que não demorem.
Que venham logo.
Minha pele e minha língua imploram.
Que venham logo
silêncio, código, esfinge.
Não serei devorado.
E preciso dormir o sono dos justos.

LAPSO

O mote esquecido bate na minha teta,
puxa as minhas pálpebras.
Aquele mote que veio me visitar ontem
vinga-se agora
de minha preguiça e
do meu cansaço.
o mote que me cortejou
durante horas,
com um sorriso sedutor.

Algo não sossega no esquecimento recente
feito batidas misteriosas na porta do sono.
No silêncio se debatem aflitas
palavras irreconhecíveis.

O ROSTO DO POEMA

Não terá a tua emoção
o poema que escrevi.
Não sofrerá a tua dor
nem a tua tristeza.
Escrevo o poema
a partir do que em mim dói
da tua ferida
que ele cauteriza como cirurgião.

Não cantará a tua alegria
o poema que escrevi.
Não terá o teu sorriso
nem a sonoridade da tua gargalhada.
Escrevo o poema
a partir do que em mim se alegra
do que em ti é criança
a quem ele dá as mãos para brincar de roda.

Não terá a cor de teus olhos
o poema que escrevi.
Não terá a maciez de tua pele
nem o arco das tuas sobrancelhas.
Escrevo o poema
a partir do meu rosto
no teu,
de onde ele escorre
e vira espelho.

Não será para ti
o poema que escrevi.
Não será sobre ti
nem a partir de ti.
Escrevo o poema
a partir da minha presença na tua,
de onde ele escapa
feito pássaro.

PEQUENA POESIA

A quem interessa os dramas tecidos
numa rede tão pequena,
o novelo de nós
cegos?
A quem interessa as palavras espremidas
entre as pedras do silêncio
feito uma dispnéia?

A quem interessa a cantiga rouca
na garganta
quando existe o mar imenso e as navegações,
os desertos e as transumâncias?

...Mas tudo que é pequeno persiste feito uma sombra,
feito um dicionário impresso na língua,
ainda que se ouse talar
de navegações e transumâncias.

OS DEDOS DA NÁIADE

O alumbramento do texto
e a linguagem que já corre nua
para se esconder pra lá do esquecimento
onde a memória é como se não fosse,
mas é e está
feito a náiade submersa no rio
deslizando a ponta dos dedos na lâmina da água
mais acima,
tocando os raios de luz
delicadamente.

TESTEMUNHAS

Não serão deixadas entrevistas.
publicadas em jornais ou em livros,
ou gravadas na TV.
Não haverá vestígios do homem sem importância
que a terra há de comer.

As testemunhas serão as palavras encantadas
da poesia
no ar
feito folhas ao vento
ou passarinhos adejando.

POETA

Porque fizeste da coisa mais pequena
a coisa maior do mundo
Porque transformaste o grão de areia
em estrela
Porque deste à tua infância
a memória de um império
e à voz de tua mãe
o ciclo infinito das ondas do mar
Porque na solidão convocaste os fantasmas
Porque transformaste a sede em água
Por tudo isso
e porque as palavras aprenderam a cantar
em tua boca

SINÔNIMO

Cada uma é múltipla
- espelho na íris.
Cada uma é única
- histórias na retina.

Mas coloca-se uma em frente à outra
e no reflexo dos olhos nos olhos
faz-se a mágica da identidade.

HERANÇA

Me disse sábias palavras
- passarinhos invisíveis
pousando no meu silêncio.
Mas não basta.
E sentirei falta de ouvi-las de sua boca
ou de ouvir o que delas ficou faltando
sempre que o mundo me fizer medo.
E vez por outra terei o impulso
de dar um telefonema.

PORQUE TINHAS QUE VIRAR ESTRELA

Porque tinhas que virar estrela,
inacessível, sangrando em mim,
desandei do teu rastro
- luz esquiva, piscando na distância escura ­
e já não te refletes no poço
onde agora pouso as mãos em concha.
Agora mato a sede na água
de onde arranquei teus olhos
e na cacimba cega,
recolhendo o vício de tua ausência,
sobrevivo como exilado
e me esqueço feito suicida.

(Por que tinhas que virar estrela
e levar contigo a borboleta
que pousava em minha boca,
deixando um caranguejo apenas
mexendo por baixo da minha pele?)

ANOS

Tão inacessível aos meus olhos
quando estavas próxima.
Só quando a morte cavou um buraco no tempo
e os anos foram limpando, limpando
o espelho da memória
é que pude perceber todas as luzes tuas.
tão tarde embora.
No metal da lembrança
que os anos poliam
tua imagem ia surgindo para mim
cada vez mais clara.

FATALIDADE

Na livraria, não sei por que,
de repente lembrei-me de você,
do seu drama, de sua destruição.
Tudo que poderia ter sido
não foi...
E a fatalidade era apenas uma desculpa
que inventávamos
para justificar a nossa omissão,
para acalmar a nossa consciência.

Não, o tempo não filtraria as lembranças,
dando-lhes o sentido que nos fosse conveniente.
O tempo só desembaçaria o espelho da memória,
tornando mais claro o nosso rosto monstruoso.

Transformá-lo num ser inocente,
apagar os seus defeitos
era apenas o outro lado da culpa.
E teria pouca sustentação.

A CANÇÃO

Ouvi a canção e me lembrei de você,
mas não como lembrava antes.
O tempo desfigurava a memória,
fazia-me lembrar sem sentir.

Nos perdêramos um do outro
e as pegadas que me levaram a você um dia
tinham desaparecido.
Tudo que aquela canção dissera
não dizia mais.
As palavras se metamorfosearam,
perderam as asas,
e a música que carregara o coração
num vórtice caudaloso
apenas banhava os pés
de quem atravessa descalço um regato.

A canção era uma casa vazia e asseada.
E aguardava novos moradores.

AMIZADE

Perdoa-me,
se existem os limites da solidão.
Talvez seja difícil para entenderes,
mas há uma fronteira que não deves transpor,
um santuário que não deves invadir.

Há um lugar onde passeio com os mistérios
e converso com eles.
E um intrudo poderia expulsá-los
como se me cortasse a língua ou me arrancasse
os olhos.

Perdoa-me e procura entender se quiseres.
Podemos ser amigos em toda a extensão da terra,
mas deixa-me só no quando e no onde
em que decifro e falo.

Aprende se puderes ou se quiseres
a deixar-me muitas vezes, muitas vezes
no sítio onde ando nu, sozinho,
a colher metáforas das árvores do silêncio.

O SONHO

Não pensei que pudesses vir ainda
como antes, muito antes.
Não pensei que viesses como há muitos anos,
muitos anos...
Não pensei que viesses
como já não sou.

Mas chegasse naquele espaço que só existe
entre a luz tênue do esquecimento
e a sombra da culpa na memória.
E a serpente que se imaginava esmagada sob os pés
levantou-se de súbito, agitando a língua partida.

O sono levantou a pedra
onde o réptil se escondia refeito
e o veneno do pecado
manifestou-se na carne etérea, de repente.
Despertei com o peito sangrando,
a marca dos dentes da cobra no coração.

UMA QUESTÃO DE MINUTOS E DE ETERNIDADE

Um trato formal, apenas.
Uma questão de minutos.
É aguardar a luz
que pudesse brilhar nos teus olhos
feito estrela cadente,
a palavra desprevenida
que pudesse escorregar de tua boca
feito mel escorrendo no cortiço.

Um trato formal, apenas.
Uma questão de eternidade.
A ânsia a queimar o espírito.
E depois, carregar brasas no peito
nos labirintos da noite.

SURDO

Você não me contou a história.
Uma frase recolhida
num recanto qualquer da memória
toma a dimensão de repente
de um meteoro azul passando ao largo
na noite profunda
ou da sombra do vôo
de pássaros silenciosos.

Da história, nem um terço...
Sobraram essas migalhas na lembrança
e os farrapos de testemunhos perdidos
das máscaras de papel desfazendo-se no seu rosto.

Nenhum arqueólogo recolherá o impalpável
dos êxtases do seu olhar.
Nenhum arqueólogo poderá reconstruir
o castelo de areia
levado pelas ondas do mar.

Você não me contou a história....
E a história sempre se dispunha
na sua garganta e na sua língua
feito as pequenas flores que crescem
na beira da estrada.
Não pude escutar.

CONVITE

"Foi então
que da minha infinita tristeza
aconteceu você" (Vinícius de Moraes)


Meia palavra, entre mim e ti
- educadamente impessoal -,
teu gesto amável
e tua piscadela ambígua,
apenas.
E eis que te convido
para o meu pensamento,
para iluminar o sótão escuro
do meu pensamento
com a luz do teu rosto.

Meia palavra,
um gesto amável,
uma piscadela ambígua.
E tua pele roçando a pele
das minhas noites brancas
e teu rosto feito uma rosa
flutuando na semi-escuridão...

Vem,
eis que te convido.
Vem com teu corpo delicado
procurar no meu abraço
os gestos de mim perdidos.
Vem com tua boca molhada
procurar na sofreguidão da minha
as palavras esquecidas
quando não estavam impuras ainda.
Vem,
que já não cabes
no pensamento
e o verbo sonha em fazer-se carne.

Vem,
eis que te convido
para mergulhar no meu desejo
e voltar comigo à superfície translúcida,
meu braço a enlaçar tua cintura delgada.

EXPERIÊNCIA MÍSTICA DA CARNE

Tua voz longe de tua presença,
tua voz no ar feito um pássaro
pousando no meu ouvido.
arrulhando feito um pombo.

Tua voz erguendo altares
onde rezo o teu corpo ausente
e levito feito um santo místico
e escrevo na carne a poesia fremente
e despojada
- pele. mão e língua ­
das palavras bêbadas na saliva.

Tua voz molhando-se na baba
da minha boca
como uma ninfa lúbrica.
Tua voz longe de tua presença,
nos fazendo
feito o mito da serpente no paraíso.

CATADOR

Cato, hoje,
na escuridão dos meus ouvidos
as estrelas de tuas palavras
tão poucas,
aqui e acolá.

Cato, hoje,
avaramente,
percebendo tarde demais
que eram muitas, muitas
as estrelas de tuas palavras.