Os bem-te-vis e o sol

Maurício de Macedo

O sol levantara-se no horizonte

e clareava a manhã.

Não se ouvira, no entanto,

o canto dos bem-te-vis

acordando o sol.

(Quem teria acordado o sol

que nunca se levanta

sem o canto dos bem-te-vis

puxando-lhe os cabelos dourados?!)

Alguma palavra

feito cera endurecida no ouvido

nos teria tornado surdos,

com certeza.

O sol não se levanta

sem o canto dos bem-te-vis.

De lua

Maurício de Macedo

Anunciaram a lua cheia.

Na beira da praia

ele aguardaria.

De lua, aluado

- mais íntimo do que os astrônomos.

(Os astrônomos não sabiam

da traição da princesa cativa.)

Aluada

- cio de luz -,

a fugitiva rondaria de noite

na praia.

E ele aguardaria.

Subindo no céu

como gata subindo no telhado

- branca felina

arrepiando a noite

com seu miado langoroso

de silêncio -,

ela viria.

E os astrônomos não saberiam

de nada.

Biópsia

Maurício de Macedo

O médico solicitou a biópsia.

É que a morte se esconde

na vida.

Surpreendida,

mascarada,

a morte fingiria

perder o lance do jogo

para continuar brincando

de esconde-esconde.

Adiaria o lance

apenas

em que retiraria a máscara

e mataria de susto.

Solução final

Maurício de Macedo

Câmara de gás para os velhinhos.
(Câmara de gás e crematório.)

E a previdência resolveria
- de maneira rápida, asséptica
e eficaz -
todos os seus problemas.

É lindo

Maurício de Macedo

Todo dia,

às seis da manhã

- ela, empregada doméstica,

ele, operário da construção.

Todo dia,

às seis da manhã

- ela, encostada no coqueiro -,

tantos beijos e amassos.

Todo dia,

às seis da manhã,

na praia de Ponta Verde,

antes do horário de serviço,

o amor é lindo.

Herança

Maurício de Macedo

Procurar

na sombra do que foi dito

a outra metade

- na sombra do silêncio

o que não foi dito

por inteiro.

No que falta

- pela metade ou inteiro -

o morto deixa o enigma

indecifrável

da trilha de um tesouro perdido.

Eis a grande herança

- procurar a vida inteira

metade da palavra,

palavra inteira.

As moreias

Mauricio de Macedo

Entre dejetos

que a maré despeja

na praia,

as moreias mortas

- bocas abertas,

dentes serrilhados.

Odaliscas langorosas

requebrando na espuma

que se espraia na areia...

Os urubus não desceram

ainda

para arrancar-lhes com o bico

a lascívia da morte.

Dia Internacional da Mulher

 Maurício de Macedo

Há uma flor

no sorriso cansado

da operária

na linha de montagem

e da bancária

no caixa do banco.

Há uma flor

na firmeza da palavra

da médica no consultório

e da engenheira na obra.

No ventre de todas,

uma rosa

- maciez das pétalas,

ferida dos espinhos.

Ninguém tem mais poder

do que elas.

Monge

Maurício de Macedo

Sua família era tão grande

quanto o silêncio.

Suas propriedades tão vastas

quanto a memória.

Sua fortaleza tão alta

quanto a solidão.

A palavra,

escrita na água

e no vento,

seu brasão.

Fantasia

Maurício de Macedo

Oferece uma fantasia

à verdade.

E a verdade abandona a máscara

da sisudez

e sai no bloco carnavalesco

fantasiada,

bêbada,

dançando e trocando beijos

de língua.

Diz a verdade como se mentisse.

E porque pensam

que está mentindo,

diz a verdade como ninguém. 

Mein Kampf

Maurício de Macedo

O livro está à venda.

(Não se queimam livros

nas democracias.)

Não é do livro

a fumaça que sobe.

É dos crematórios de Auschwitz.