12/19/2014

Sacudindo a cabeleira

Maurício de Macedo

"I'll follow the sun"
Lennon/McCartney

Tímido e distante
o canto do bem-te-vi
na manhã cinzenta
- imprevisto horizonte
em dezembro.
O passarinho vai soltando
com o bico
pouco a pouco
a cabeleira do sol
para que o sol possa ir sacudindo
a cabeleira solta.

E a gente vai poder seguir
pela estrada por onde caminha o sol
tão airoso
sacudindo a cabeleira solta.
E seguindo o sol com sua cabeleira solta,
a gente vai poder ver

Bem-te-vi, bem-te-vi...

Língua portuguesa

Maurício de Macedo

Esse rio em mim
para onde correm outras línguas
- afluentes do rio em mim.

Toda água em que um dia
soletrar o mundo
e me soletrar
há de correr para este rio.

Todas as canções
que o rio em mim receber
na canção da saudade
se traduzem.

Para o rio em mim
correm todos os rios
em que me espelhar.
E a boca desse rio
num beijo de língua
entrega ao mar

a palavra do paraíso perdido.

8/16/2014

Espantalho

Maurício de Macedo

A única persona
que poderia exibir.
Sorrir para não desagradar,
gracejar para apagar o rastro
e o cheiro.

Espantalho,
mais do que palhaço,
afugentava o  medo
das aves de rapina
eletrônicas.

Em sua garganta seca
e em seus olhos injetados,
clandestina,
a poesia.
Na máquina
onde agulhas perfuravam
o corpo da palavra

presa numa esteira rolante

6/12/2014

Depois do rancor

Maurício de Macedo

Pele de chocolate.
Pele de pétala de rosa.
Belos olhos negros.
Belos olhos azuis.
Bonitos cabelos encaracolados.
Bonitos cabelos lisos.

A gente diz tudo,
depois do tempo
em que só podia dizer
que alguém era negro
ou que alguém era branco.
A gente diz tudo,
depois que a gente
esqueceu de dizer
(que alguém era negro
ou que alguém era branco).

A gente diz tudo
- desabrochar das palavras,
boniteza do dizer -
depois que se desfez o carimbo
e a marca que ele deixava

nos documentos e nos corações.

5/25/2014

Sanfoneiro

Não aprenderam na escola.
(Não frequentaram escola.)
E tocam xote, xaxado, samba,
frevo, forró, baião...

Tocam tudo
que os olhos não lêem,
tudo que lhes chega no ouvido,
que na respiração se escreve
e que é lido pelas mãos.

3/18/2014

Amigo na praça

Maurício de Macedo

Era amigo do ministro
o poeta Drummond.
E o funcionário podia escrever
sem nenhum capataz
a lhe atormentar a inspiração.

No clima soturno
das pequenas repartições públicas
- desconhecidos dos ministros -
pequenos poetas rabiscam
dissimulados
como se fossem bandidos.

E adoecem de medo.