3/01/2009

Apresentação

AS DESVENTURAS DA NEGRA FULÔ

Arriete Vilela (*)

Mauricio Macedo é um leitor atento, disciplinado - e compulsivo. Tem dois livros editados - Cinzel da Língua e Sínteses de Sombra - e mais quatro prontos, à espera de publicação.
Este - As aventuras da Negra Fulô - é um texto divertido, aparentemente leve e descompromissado, e bom para uma leitura oral ou dramatizada. À primeira vista, parece uma brincadeira cômica, pois o autor "brinca" com a Negra Fulô, famosa personagem fictícia do poeta alagoano Jorge de Lima, e com algumas personalidades reconhecidamente do domínio público.
Excetuando o Conselheiro Silva ("Mas todo o heroísmo não bastou! para vencer a sanha do agressor/ [...] Tragado por uma bomba,/ morreu Conselheiro"), Joaquim José ("Deputado das Minas Gerais/ representava a oposição/ e falava com voz mansa/ sobre trabalho, progresso e paz"), a Dra. Nise e o Dr. Artur ("que não receitavam drogas nem choque/ - condutas de horror -/ mas distribuíam tinta e pincel/ para os doidos") e Nossa Senhora ("Vai, Fulô, volta para o poema! Reza dez ave-marias e dez pai-nossos/ como penitência"), os demais personagens são tomados risíveis, burlescos, caricatos, pois à história real de cada um deles é acrescido um fato que lhes relativiza o caráter heróico conhecido oficialmente.
O texto, portanto, aparentemente cômico - ou justo por isso -, é crítico, irônico, pertinente: traz à tona, revisitadas e atualizadas, questões muito sérias que compõem a história da sociedade, como a cegueira do fanatismo religioso ("Todos queriam ver/ o choro e o riso da 'santa' na procissão"); o descaso e a conseqüente marginalização do autêntico folclore ("decidiram fundar no sertão/ uma cidade sagrada/ do folclore marginalizado"); a brutal violência contra travestis e prostitutas ("Vez por outra aparecia,/ jogado num matagal,/ com requintes de violência mais bruta,/ o corpo de um travesti/ ou de uma prostituta"); o abuso de poder, seja por desmandos de governos incompetentes e ditadores ("De um rebenque de cabo de prata/ não largava o interventor [...] E Maceió vivia a ordem/ sob a égide do rebenque do Pacificador/ não fossem alguns eventos estranhos/ que já causavam horror"), seja por questões injustas e pessoais ("[...] provocou na Primeira Dama! um ciúme muito grande./ E a Primeira Dama convocou/ o Secretário de Segurança para dar cabo de Fulô. [...] Furioso, o Secretário deu um tiro/ no peito da Negra Fulô.“), e o desvio de verbas para campanhas políticas, atividade paralela ao tráfico de drogas e lavagem de dinheiro ("Era um apartamento muito grande/ o de seu Paulo Calabar [...] Financiara até campanha/ de deputado federal [...] Por vezes vinham alguns homens/ entregar a seu Calabar/ uns pacotes bem fechados [...] E vinham depois outros homens/ apanhar os pacotes/ que guardara seu Calabar").
A sensualidade da Negra Fulô é um elemento reiteradamente ressaltado em todos os poemas e suas façanhas atestam o exercício da sedução mística, sendo, no entanto, devastadoras as conseqüências do seu don juanismo: suas aventuras amorosas finalizam sempre em trágicas desventuras (Passional, A conexão, O seqüestro, A lira, Diana). Como Don Juan, que dispunha de um cavalo veloz com o qual fugia e partia par a próxima conquista, a Negra Fulô, de Maurício Macedo, igualmente parte (ou foge) em "situações-limite" e se aninha no poema protetor de Jorge de Lima, até, naturalmente, a próxima aventura - ou, se preferirmos, até a próxima desventura.
Aliás, o próprio Jorge de Lima não escapa à sedução da Negra Fulô ("Fulô e o Dr. Jorge passaram a namorar,/ em lugares recatados/ na lagoa ou à beira-mar/ com direito a final de noite/ num quarto de motel ou na praia sob o luar.”). Um tórrido, embora efêmero, caso de amor que, segundo Maurício Macedo, antecede a criação do poema: ("Adeus, Jorge,/ que já parto para esquecer minha dor./ Quem sabe um dia eu veja/ os versos do seu amor?!").
O último poema - uma metáfora da própria vida - registra a única redenção possível: a poesia, através da qual os "seres não adaptados/ aos reclamos da modernidade" poderão salvar-se e reinventar o mundo.
O livro de Maurício Macedo presta-se a interpretações várias e muito mais detalhadas. Com a palavra, pois, os estudiosos da crítica literária.
* Arriete Vilela é escritora

As Aventuras da Negra Fulô

Engana-se quem pensa
que a Negra Fulô se contenta
em viver no poema tão belo
que Jorge de Lima criou.
A negra foge do poema, conhece novos personagens, ama, brinca, dança, luta,
morre, ressuscita...
Vive grandes emoções,
enfrenta grandes perigos...
E em situações-limite
retoma sempre ao porto seguro
- o monte das musas,
onde o tempo se traduz
em beleza e eternidade.

Acompanhemos, então,
a negra em suas aventuras que a Poesia tem razões que a História desconhece.

A Procissão

Encantada com a missa
na capela do engenho
onde não podia entrar,
A Negra Fulô fugiu do poema,
atravessou o tempo,
mais uma vez,
e entrou de mansinho,
no dia 27 de agosto,
na Catedral de Maceió.
Subiu no altar,
enquanto Nossa Senhora dormia,
tirou devagarinho
o manto e a coroa da santa
e se escondeu na sacristia.

Quando Nossa Senhora acordou,
ficou assustada
com o que sucedeu
e desceu à procura
do que era seu.
E quando a santa se afastou,
Fulô subiu no altar,
cobriu-se com o manto,
colocou na fronte a coroa,
assumindo pose de santo.
Mal a negra no altar se postou,
foram chegando à igreja
bispo, padres e beatas
para colocar a santa no andor.
Nossa Senhora se escondeu
(Não podia se apresentar
naquela situação).
E foi assim que a negra
foi levada em procissão.

O cortejo saiu pelas ruas
conduzindo a Negra Fulô.
Sobre a cor escura da santa
alguém comentou,
mas a fé relevou o detalhe
(Foi uma ilusão que passou).
E quando o menino disse à mãe
que Nossa Senhora era preta,
levou um cocorote e se calou.

Fulô ia feliz,
conduzi da pelo clero,
prefeito e governador,
majestosa sobre a massa,
carregando o seu andor.
Porém a negra
a emoção não controlou.
Lágrimas descerem dos olhos,
um sorriso de beatitude
em seu rosto se esboçou.
- A santa está chorando!
alguém gritou.
- Está sorrindo também!

outro arrematou.
E foi um Deus nos acuda
no meio da multidão.
Todos queriam ver
o choro e o riso da "santa" na procissão.

O andor balançava,
cai, não cai...
A negra despertou do torpor,
deu um pinote para a chão
e as pessoas gritaram:
- A santa pulou! A santa pulou!
Fulô ficou assustada
e desatou a correr
e o povo corria atrás dela,
querendo a "santa" reter.

Nossa Senhora,
que acompanhava aflita
no meio da multidão,
teve que recorrer ao Filho,
pedindo- Lhe intervenção.
Ergueu os olhos para o céu,
sobre o povo estendeu a mão.
O tempo voltou de repente;
tudo não passou de um sonho,
apenas uma ilusão.

Fulô se escondeu na igreja,
devolveu manto e coroa,
à santa pediu clemência.
Nossa Senhora sorriu,
dizendo com indulgência:
- Vai, Fulô, volta para o poema.
Reza dez Ave-Marias e dez Pai-Nossos
como penitência.

A negra voltou para o poema,
fez a penitência
e deitou-se sobre o velho saco de açúcar
no chão,
enquanto em Maceió as pessoas comentavam
sobre uma epidemia de sonho
que todo mundo sonhou
que Nossa Senhora era preta,
que chorou na procissão
e deu um pinote do andor.

Passional

A Negra Fulô levantou-se nuinha,
vestiu o cabeção
e saiu devagarinho do poema
para não acordar o senhor.
Saiu do poema
e atravessou o tempo
a Negra Fulô...

A negra atravessou o tempo
e foi trabalhar como doméstica
em Maceió.
Foi lá que conheceu Eusébio,
apelidado de Zumbi,
negro forte, de sorriso aberto,
que trabalhava de estivador,
depois de cortar cana
nas fazendas de União.

Conheceram-se numa casa de dança
na rua Barão de Atalaia,
onde havia muita briga
e até peixeirada.
Dançaram várias vezes,
durante muitas noites,
até que um dia ficaram de namoro
Zumbi e a Negra Fulô.
Mas não foi apenas Zumbi
que se encantou pela negra Fulô.
Virgulino, ajudante de pedreiro,
sertanejo de olho vesgo,
que escondia numa caixa
a cabeça murcha do avô,
viu Fulô pela primeira vez
quando foi trabalhar na obra,
perto da casa onde a negra se empregou.
E sua vista se escureceu
como no poema a vista do senhor.
Pensava na negra no ônibus,
no trabalho...
Sonhava com ela de noite.
De seu coração
tomava conta um negror.

Mas a negra nem ligou
para o olhar arrastado de Virgulino.
(Repara se ia querer
um homem feio daquele,
de olho troncho?!
E ainda por cima macambúzio...
Bicho do mato!)
Bom mesmo era o chamego
nos braços do estivador,
o sorriso aberto do negro
e o fungado no pescoço...

Como se não bastasse a sina
de carregar numa caixa
a cabeça murcha do avô,
Virgulino carregava agora
um punhal cravado no peito:
a indiferença da negra
ao pedido silencioso
dos seus olhos...
E aboiava baixinho
para as estrelas
nas noites solitárias.

Para aumentar o sofrimento
passou a freqüentar
a casa noturna onde a negra ia dançar.
E era uma tortura
vê-Ia bonita
nos braços do estivador,
os sovacos suados
e as coxas quase rasgando
a calça apertada.
O zarolho assuntava,
bebendo cachaça no balcão.
Olhava tímido pra negra
e a negra nem ligava.

Certa noite, porém,
encorajado pela bebida,
falou com a língua enrolada
quando a negra passou:
- Fulô, Fulô...
e mal se equilibrando nas pernas
apoiou-se sem querer
nos ombros desnudos da Negra Fulô.
- Te enxerga, enxerido!
assim a negra falou,
seguindo-se rapidamente
um soco do estivador.

O sangue escorreu do nariz de Virgulino
e trouxe-lhe à boca um gosto esquecido,
acendeu em seus olhos um fogo distante
como o sol na caatinga.
Um carcará gritou em seu peito;
segurou no cós da calça
o punhal que fora do avô
e depois foi apenas um golpe
no coração de Zumbi.

Virgulino foi preso,
condenado por homicídio,
mas deixaram que levasse consigo
a caixa com a cabeça do avô.
A Negra Fulô teve medo.
Fugiu para o poema,
retirou o cabeção
e se deitou nuinha
ao lado do senhor
que ainda dormia.

O Seqüestro

Indignada por ter levado
couro de feitor,
a Negra Fulô escapou da senzala,
ludibriando tempo e lugar,
e foi procurar trabalho,
muitos anos depois,
na cidade de Maceió.
Como não conseguiu emprego,
a negra foi disputar,
na avenida Duque de Caxias,
com prostitutas e travestis
um ponto no trottoir.

Maceió fora pacificada
por um interventor federal
que varrera da cena urbana
greves de operários,
passeatas de estudantes
e os excessos do Carnaval.
De um rebenque de cabo de prata
não largava o interventor.
Tantas cidades no Brasil já domara
que era chamado de Pacificador.

E Maceió vivia a ordem
sob a égide do rebenque do Pacificador,
não fossem alguns eventos estranhos
que já causavam horror.
Vez por outra aparecia,
jogado num matagal,
com requintes da violência mais bruta,
o corpo de um travesti
ou de uma prostituta.

Certa noite, já muito tarde,
quando fazia o trottoir,
Fulô foi abordada por um carro escuro
e convidada pra entrar.
Mal entrou no veículo,
levou uma coronhada
enquanto o carro seguiu rápido
levando a negra desmaiada.

Quando Fulô acordou,
estava amarrada,
numa cama velha,
numa sala escura fechada...
Até que de repente
a luz se acendeu
e por uma porta aberta
um homem apareceu.
Trazia na mão um rebenque
de cabo de prata
e foi logo batendo na negra,
enquanto dizia:
- Puta, a gente mata!
Batia à vontade,
parecia não cansar.
A negra gemia,
o corpo sangrava,
doía-Ihe a carne,
faltava-lhe o ar.
De repente, porém,
o homem parou;
dirigiu-se à porta
e bem alto chamou:
- Podem levá-Ia.
Por aqui, a festa acabou!

Fulô foi levada
num carro preto:
Dois homens e um revólver
apontado para o peito.
Súbito, porém,
dois faróis na contra-mão,
um choque, o carro virado
e os dois homens jaziam no chão.
Fulô saiu do carro
e seguiu o caminho do poema sem olhar para trás.
Nos versos, pelo menos,
poderia sonhar com o dia
em que a avenida Duque de Caxias seria chamada avenida da Paz.

A Musa

Por causa de uma paixão súbita
pelo filho mais velho do senhor,
a Negra Fulô fugiu do poema
e foi trabalhar em outra época
na cidade de Maceió
para esquecer sua dor.

Foi trabalhar na casa de seu Gráci,
que ria pouco
e gostava de fumar,
que lia a noite toda

e por vezes escrevia sem parar.

Apesar de sisudo,
era seu Gráci um bom patrão.
Assinara a carteira da negra
e pedia à esposa
que a orientasse na educação.

Tinha poucos amigos o patrão.
Entre eles, o Doutor Jorge,
médico da Santa Casa
que gostava de versejar
e que não tirava os olhos da negra
quando vinha à casa de seu Gráci
para o amigo visitar.

Como Fulô quase sempre
correspondia ao seu olhar,
Doutor Jorge passou a esperá-Ia
na esquina por onde a negra costumava passar.
E abria a porta do carro.
convidando-a para passear.

A negra recusava o apelo
– que no fundo também era seu –
­até que uma noite,
depois de muita insistência,
a Negra Fulô cedeu.

A partir desse dia,
Fulô e Doutor Jorge passaram a namorar,
em lugares recatados
na lagoa ou à beira-mar,
com direito a final de noite
num quarto de motel
ou na praia sob o luar.
E do amor já surgiam
novas inspirações:
da veia poética do médico
brotavam para a negra
versos e canções.

Telefonemas anônimos, porém,
a negra passou a receber,
em que uma voz feminina dizia
que em breve ela ia morrer.
Dizia que tivesse vergonha
e que deixasse o doutor,
que parasse de fazer macumba
para prender seu amor.
(Foi então que a negra pensou
que uma simples empregadinha
não tinha nenhum futuro
tendo um caso com um doutor.)

Certa noite,
quando o amante dormia,
depois dos embates do amor,
a negra se levantou de mansinho,
beijou de leve a testa do médico
e lhe falou:
- Adeus, Jorge,
que já parto para esquecer minha dor.
Quem sabe um dia eu veja
os versos do seu amor?!

E saindo pela janela
foi em busca do poema
onde o poeta a criou,
como quem desaparece devagarinho
sob um caramanchão
de um jasmineiro em flor.

Doutor Jorge não viu mais a negra
depois que acordou.
E comenta-se em Maceió
que durante vários meses
macambúzio ele andou,
pronunciando baixinho:
- Essa negra Fulô,
Essa negra Fulô...

Diana

A Negra Fulô levantou-se cedinho,
afastou as portas da estrofe
em que dormia
e fugiu do engenho de versos
para ser Diana do Pastoril,
na cidade de Maceió,
muito tempo depois.

Usando vestido curtinho,
azul e vermelho,
era um sucesso a Negra Fulô
dançando na praça
nas noites claras de verão.

Certa noite,
quando todo mundo o festejo aplaudiu,
subiu três vezes ao palco
um rapaz de bigode grosso
para colocar no corpete da negra
dinheiro para o Pastoril.

Depois do festejo
o rapaz aguardou a negra
e assim lhe falou:
- Me chamo Deodoro,
sou centro-avante do Clube de Regatas Brasil.
E conversa vai, conversa vem.
foram tomar cerveja...
E ficaram de namoro
Fulô e Deodoro.

E tudo continuou assim...
Até que outro dia,
quando Deodoro foi jogar
em outra cidade do Brasil,
subiu três vezes ao palco
um rapaz de bigode fino
para colocar no corpete da negra
dinheiro para o Pastoril.

Depois do festejo
o rapaz aguardou a negra
e assim lhe falou:
- Me chamo Floriano, sou centro-avante do Centro Sportivo Alagoano.
E conversa vai, conversa vem,
foram tomar cerveja...
E ficaram de namoro
Fulô e Floriano.

Quando Deodoro voltou,
a negra nem ligou.
Ele se ajoelhou a seus pés,
pediu que a negra voltasse
e ela nem ligou.
Então Deodoro comprou
um litro de formicida,
trancou-se sozinho no quarto
e se matou.

E tudo continuou assim...
Até que outro dia
quando Floriano foi jogar
em outra cidade do Brasil,
subiu três vezes ao palco
um rapaz de cabelo vermelho
para colocar no corpete da negra
dinheiro para o Pastoril.

Depois do festejo
o rapaz aguardou a negra
e assim lhe falou:
- Sou o marinheiro ruivo.
Conheço terras e mares.
E conversa vai, conversa vem,
foram tomar cerveja...
E ficaram de namoro
Fulô e o marinheiro ruivo.

Quando Floriano voltou,
a negra nem ligou.
Mas ele não se ajoelhou,
pedindo pra negra voltar.
Puxou uma faca-peixeira
e correu atrás de Fulô.
A negra deu um pinote
da Ponta Grossa até o Farol
- e Floriano atrás -,
deu outro,
do Farol até Bebedouro
- e Floriano atrás -,
deu mais outro,
de Bebedouro até Pajuçara
- e Floriano atrás...
Então Fulô teve um medo medonho,
deu um pinote maior
até os braços do poeta
que escreveu um poema hermético
como uma selva fechada
onde Floriano se perdeu
e a negra se salvou.

A cidadela

A Negra Fulô andava enjoada
dos serviços de mucama
e das desconfianças da sinhá.
Foi então que fugiu do engenho,
escorregando por entre duas estrofes
para uma outra época,
muito tempo depois.
E foi dançar folguedos
na cidade de Maceió.

Desenvolta em todos eles
- seja na dança ou no canto -,
no Pastoril, no Guerreiro
ou no Côco

a negra era um encanto.
E a tal ponto ficou
o povo entusiasmado
que as autoridades a nomearam
Presidente da Comissão
de Folclore do Estado.

Foi ocupando esse cargo
que recebeu a visita de Conselheiro da Silva,
folclorista do Ceará,
que percorria o Nordeste,
organizando um movimento
em defesa da cultura popular.
Sensibilizada por sua exortação,
a negra convocou
todos os grupos de folclore
para uma ampla discussão.
E numa assembléia gigante
representantes de todo o estado
decidiram fundar no sertão
uma cidade sagrada
do folclore marginalizado.
De ônibus ou a cavalo,
a pé ou de caminhão,
caravanas se dirigiram
para o alto sertão.
Liderados por Conselheiro e Fulô,
fundaram a cidade da dança,
do canto e do louvor.

E logo foram atraídos
pelo encanto da cidade
moradores da região
que nunca viram na terra
tamanha felicidade.
Pouco a pouco as fazendas ficaram
sem os braços do trabalhador.
Todos queriam viver
na cidade de Fulô.

Diante do exemplo nefasto,
o governo decidiu intervir,
enviando tropas do estado
para o perigo coibir.
Mas Fulô e Conselheiro
organizaram a resistência.
Com pelotões de Guerreiros,
Marujos e Pastorinhas,
enfrentaram o assalto das tropas
e a cidade venceu sozinha.

Se era perigoso o exemplo,
a derrota era demais
e o Governo decidiu intervir
com tropas federais.
Soldados e tanques de guerra
levantavam a poeira do chão
e aviões de combate
cortavam o céu do sertão.

Lutou como podia
a rudimentar alegria
contra a potência bélica
da tecnologia.

Mas todo o heroísmo não bastou
para vencer a sanha do agressor.
Caíam Pastoras e Marinheiros...
tragado por uma bomba
morreu Conselheiro.

Fulô percebeu
que era inútil lutar
quando os corpos dos mortos
cobriam o lugar.
Deu um pinote até Maceió
e o corpete da Diana entregou
à mulher maluca que dançava nas ruas
tendo no cabelo uma flor.
Deu outro pinote até Marechal
e no cais de Santa Madalena entregou
a espada do Guerreiro
a um velho pescador.
Deu, por fim, um pinote maior
que o poema alcançou
e deitou-se cansada,
coberta de cinza e poeira,
ao lado do senhor.

O Sonho

Indignada com o sofrimento
entre os negros da senzala,
a Negra Fulô fugiu para um tempo
muito depois da escravidão
e foi ser faxineira na cidade de Maceió.

Era um tempo de república,
de democracia e de eleição.
E percorriam o Brasil
falando em ruas e praças
candidatos do governo e da oposição.

A convite do sindicato
das faxineiras da cidade,
Fulô foi assistir na praia da Pajuçara
ao discurso de um candidato
que tinha como lema:
Ainda que tardia, a liberdade.

Joaquim José, deputado das Minas Gerais,
representava a oposição
e falava com voz mansa
sobre trabalho, progresso e paz.
A negra se encantou
com seu olhar tão suave,
com suas palavras bonitas,
falando que o povo sofria
miséria e exploração,
pedindo que todos se unissem
para garantir a vitória
do candidato da oposição.

Fulô saiu do comício
pensando no deputado
(Como era bonito,
que palavras tão lindas dizia...)
À noite, porém, teve um sonho
de gelar o coração;
Sonhou que o deputado era preso,
que era enforcado na praça
e esquartejado depois.

Como o sonho se repetia
durante noites seguidas,
a negra foi consultar
a mulher que jogava búzios
no bairro da Ponta Grossa.
E os búzios disseram, então,
que mais um sonho bastaria,
para tomar realidade
o que no pesadelo se via.

Fulô foi embora assustada,
percebendo que só um jeito havia
de a tragédia evitar:
Voltou, ligeiro, para o poema
onde os sonhos seriam outros
e Joaquim José não correria o risco
de ser morto e esquartejado,
ainda que a liberdade tivesse que tardar.

A Lira

Cansada dos ciúmes da sinhá
a lhe infernizar a vida,
a Negra Fulô pôs uma coroa de fitas,
espelhos e contas de aljofar
e foi ser Lira do Guerreiro das Alagoas.
Foi ser Lira a negra, num outro tempo,
e foi dançar no Natal,
na praça dos Martírios
para o Governador.

A todos arrebatou,
dançando no folguedo,
especialmente quando cantou:
"Tu matas, infeliz,
Aproveita a ocasião,
Trespassa o meu peito,
Fere o meu coração,
Morrendo, tou consolada,
Contigo, não caso, não!"
O Governador entusiasmou-se,
bateu palmas e pediu bis
e no outro dia nomeou a negra
Secretária de Cultura.

Quem ficou triste foi Mateus
- dançarino do Guerreiro
e vendedor de ervas ­
que amava em silêncio a Negra Fulô
(Agora não mais teria
perto dos olhos
a dona do seu coração...)

A ascensão de Fulô,
tão rápida e fulgurante,
provocou na Primeira-Dama
um ciúme muito grande.
E a Primeira-Dama convocou
o Secretário de Segurança
para dar cabo da Negra Fulô.

O secretario mandou
raptar a Negra Fulô,
mas quando a viu de perto,
o homem se entusiasmou com a beleza da negra
que era um esplendor.
Prometeu-lhe então a vida poupar
se a negra aceitasse
com ele casar.

De cima do seu orgulho,
a negra ihe respondeu:
"Tu matas, infeliz,
Aproveita a ocasião,
Trespassa o meu peito,
Fere o meu coração,
Morrendo, tou consolada,
Contigo, não caso, não!"
Furioso, o Secretário deu um tiro
no peito da Negra Fulô.

Quando Mateus soube
do crime que sucedeu,
preparou uma mezinha,
derramou nos lábios da negra
e a negra ressuscitou.
Assim que se levantou,
tendo no peito,
ao invés da ferida,
uma flor,
Fulô foi para outras plagas
pois já estava cansada
de ciúmes de mulher do senhor.
A negra se foi majestosa,
com a coroa da Lira,
enquanto o coro do Guerreiro cantava:
"Meus Santos Reis
Aqui chegamos nós
Chegou nossa Lira
com seus caracóis."

A conexão

Para não apanhar do feitor,
acusada pela sinhá,
Negra Fulô levantou-se, à noite,
escapou pela estrofe que unia
o engenho ao tempo
e foi trabalhar em Maceió
no apartamento de seu Paulo Calabar.

Era um apartamento muito grande
o de seu Paulo Calabar,
de onde a negra via,
quando limpava o salão,
a copa dos coqueirais
e a imensidão verde do mar.
Era um homem muito rico
o patrão.
Tinha fazendas de cana,
comércio de automóveis...
Na Barra de São Miguel,
uma mansão.
Era um homem muito rico,
de riqueza sem igual.
Financiara até campanha
de deputado federal.

Por vezes vinham alguns homens
entregar a seu Calabar
uns pacotes bem fechados
que ele guardava no cofre
na suíte em frente ao mar.
E vinham depois outros homens
apanhar os pacotes
que guardara seu Calabar.

Dentre as pessoas que por vezes
apareciam por lá,
Fulô se agradou sobretudo
de um gringo de olhos verdes
que convidara a negra
para um passeio ao luar.

Encontraram-se na praia,
conversaram no calçadão,
caminharam à beira-mar
e terminaram a noite
num flat do hotel Meliá.
E os encontros se prolongaram
num caso de amor
que muito prazer trazia
para a Negra Fulô.

Certa noite, quando namoravam
numa praia deserta,
ouviram um ruído de passos
por trás de uma vala aberta.
A negra percebeu,
apesar da escuridão,
o rosto de um dos capangas
das fazendas do patrão.
E depois foi um tiro,
ecoando na solidão,
e o gringo jazia morto
com o rosto no chão.

Assustada, a negra saltou,
fugindo das balas
que zuniam de raspão
e correu para o mar,
pedindo à rainha das águas
proteção.
Em seu manto de águas,
Iemanjá abrigou Fulô,
resguardando a negra
da fúria do matador.

Na corrente marinha
Fulô foi levada,
nuinha, até o poema
onde chegou toda molhada.
No outro dia, em Maceió,
os jornais noticiavam
em letras garrafais:
Estrangeiro envolvido em tráfico de drogas
é encontrado morto num banco de corais.

A Epidemia

Esgotada pelo trabalho na casa-grande
e pelos abusos da sinhá
a Negra Fulô teve uma crise de nervos
e saiu correndo porta afora do poema
para ser doida em Maceió,
no hospital Portugal Ramalho,
muito tempo depois.

Foi lá que a negra conheceu
o Doutor Arthur e a Doutora Nise,
que não receitavam drogas nem choque
- condutas de horror -,
mas distribuíam tinta e pincel
para os doidos
e faziam terapias
com batuques do xangô.

Sob o cuidado dos médicos,
a Negra Fulô e os internos
passavam os dias a brincar
entre delírios e pinturas,
sessões de psicoterapia
ou dançando com os orixás...
Até que algo estranho
deu pra acontecer:
os pacientes recusavam
todo tipo de alimento
e começavam a morrer.

Os médicos se reuniram
para discutir o problema,
consultando tratados,
analisando o dilema.
Não chegaram, no entanto,
a nenhuma conclusão.
Então o governo informou
sobre uma estranha epidemia
que estava causando aflição,
a matar poetas e loucos,
seres não adaptados
aos reclamos da modernidade
de nossa civilização.
Poetas e loucos seriam
os dinossauros da época atual,
animais que não resistiram
aos processos da seleção natural.

Emagreciam a olhos vistos
os doidos no hospital,
morrendo nos braços dos médicos
que não podiam deter o mal.
Não vislumbrando saída
para a terrível situação,
os médicos se dirigiram
ao quarto da Negra Fulô.
E enquanto a Doutora mal sustentava as lágrimas,
o Doutor Arthur lhe falou:
- Fulô, minha filha,
você é a única salvação.
Fuja enquanto é tempo.
Volte para o poema
e leve consigo os doidos
sobreviventes da maldição.

A negra se levantou
fraquinha naquele dia,
beijou as mãos dos dois médicos
e foi embora recolhendo
os doidos que podia.
Fulô foi seguindo com os doidos
para o mundo da poesia
e em cada poema que encontrava
um doido a negra escondia,
na esperança de que pudessem
retomar com vida e fantasia
para preservar a doidice
na terra um dia.