Tempo

Maurício de Macedo

"É mais livre e maior

o rio da minha aldeia"

Fernando Pessoa

Existe um tempo

grandiloquente

 - o tempo trombeteado

nos anais da História.

E existe outro

silencioso 

- o tempo que se abriga

no fundo dos corações.

É dele que brota a poesia.

Cortando caminho

Maurício de Macedo 

- Na missa de sétimo dia,

o defunto só tem qualidades,

alguém comentou.

E ele então respondeu 

- A missa de sétimo dia

é pra isso mesmo.

É pra se lavar o morto.

Ele fica limpinho

e vai direto pro céu.

Pra quê perder tempo

com essa história

de Juízo Final?!

A gente corta o caminho

e pronto.

Perfidia

Maurício de Macedo

"Si tus lábios no me quieren ya besar"

Alberto Dominguez/Milton Leedes

Amar aquela mulher

não seria o bastante

para que ela enxergasse

no mar

o espelho do teu

coração.

(Nem muito menos

para que ela pudesse

falar com Deus.)

Seus lábios com certeza

não iriam querer beijar

quem exigisse tanto...

Sabor a mí

Maurício de Macedo

"En la boca llevarás

sabor a mí"

Álvaro Carrillo

O marido não fora

o grande amor.

Mas era um homem bom.

(Tinha-lhe gratidão.)

O grande amor rimou

com a dor.

Embalando-se na rede

 - o filho no colo -

cantou baixinho

Passarán más de mil años,

muchos más...

E seus olhos voaram,

atravessando a eternidade.

Frutos maduros

Maurício de Macedo

Feito frutos maduros

as palavras aguardam

o pássaro da poesia.

Para que ele não fuja assustado,

recolha do quintal a matraca

dos demagogos

e o espantalho da História.

A borboleta

Maurício de Macedo

Feito o barão doidivanas

da historinha infantil,

ele tenta sair do pântano

puxando os próprios cabelos.

A borboleta passa

 volteando

e ele estende a mão

para que ela pouse.

Asinhas tão frágeis

poderiam arrancá-lo,

quem sabe,

do atoleiro em que se debate.

Degraus de silêncio

Maurício de Macedo

Tarefa diuturna

que a Musa vai exigir 

- encontrar as palavras

que você deixou de ouvir.

Pra chegar ao Parnaso

há degraus de silêncio

que você precisa subir.

Verniz

Maurício de Macedo

O altivo desembargador

garimpou alguns discursos

 pronunciados na magistratura

e algumas quadrinhas

lidas em efemérides.

Alinhavou um livrinho

e entrou pra Academia

de Letras.

Não basta o poder.

É preciso também

a glória.

Paranoia

Maurício de Macedo

Ele não grita em uníssono.

(Ele não grita.)

E feito as ondas do mar

suas palavras não têm cabelos

que a gente possa agarrar.

Desconfiai do seu canto.

Desconfiai do silêncio

em que vive escondido.

Quem não está comigo

é meu inimigo.

Empática

Maurício de Macedo

Tão sensível e solidária,

trombeteando a favor

dos oprimidos...

(Politicamente correta,

sabe posicionar-se

contra a injustiça social.)

Arrendou as terras

que recebeu de herança.

São agora um enorme

canavial.

Os proventos que acumula

no serviço público

estão acima do teto constitucional

e está muito indignada

porque foi suspenso

o reajuste anual.

Galardoado

Maurício de Macedo

Epistemologia do arroto 

- a dissertação de mestrado

aprovada com louvor.

Epistemologia do pum 

- ele aguarda irrequieto

a titulação de doutor.

Não ligue pra ela

Maurício de Macedo

A doutora em Literatura

falou com desconfiança

- Ninguém sabe  de que lado

ele está...

E rejeitou os poemas

que o poeta escrevia.

Do Monte Parnaso

a Musa cantou com enlevo,

parodiando a dupla sertaneja

 - Pense em mim.

Ligue pra mim.

Não ligue pra ela...

Perversão acadêmica

 Maurício de Macedo

De preferência um guru,

patrono da sua ideologia

 - lê crítica literária,

mas não lê poesia.

(O que arruma no cérebro

o poema na certa

desarrumaria.)

Não sabe o que seja

o Parnaso,

desconhece a Musa.

E vai virando pedra

sob o olhar da Medusa.

Maurício de Macedo

Dizem que o poeta

Vinícius de Moraes

disse à garota que passou

Olha que coisa mais linda,

mais cheia de graça!

De nariz empinado,

a garota nem ligou.

Moça do corpo dourado

do sol de Ipanema,

embevecido

o bardo continuou.

Politicamente correta,

faria denúncia por assédio,

irritada a garota ameaçou.

Ah, por que tudo é tão triste?!

o poeta arrematou.

Data venia

Maurício de Macedo

"la claridad es la cortesía del filósofo"

Ortega y Gasset

Você não entende nada

do que o magistrado diz.

(Você que é metido a besta

e que leu Marcel Proust

em francês.)

Deus escreve certo

por linhas tortas.

O magistrado também

 - insondáveis seus desígnios

como os desígnios de Deus.

Psiquiatria moderna

Maurício de Macedo

Tudo é apenas

uma alteração bioquímica

que a farmacologia

se dispõe a controlar.

(Acalma o sintoma

e o doutor não perde tempo

ouvindo besteira.)

Freud?!

Era um feiticeiro.

Palavra?!

É coisa de poeta.

Paternidade

Maurício de Macedo

O poeta não pode mentir.

Da mentira o político

não consegue abrir mão.

O poeta sabe que a vida é breve.

O juiz tem certeza de que é imortal.

O Diabo é ambicioso 

- não escolhe um filho qualquer.

Com tanta gente importante,

não iria reclamar para si

a paternidade de um maluquinho...

Vida

 Maurício de Macedo

Arrancou a máscara

e encarou sua imagem

na superfície polida.

E entrou no espelho

em busca da sombra

que há muito perdera

 - as palavras como tochas

iluminando o caminho.

O poeta entrevado

Maurício de Macedo

Tem artrose,

hérnia de disco...

Mas as palavras,

ah, as palavras...

Dá saltos precisos 

de ginasta olímpico

e dança com desenvoltura

da valsa ao hip-hop.

De cócoras

Maurício de Macedo

A História é um brejo

 - sapos coaxando

pra lá e pra cá.

Que se cuide o infeliz

que de cócoras com eles

não aprende a grasnar.

A língua pegajosa

do sapo

não alcança a estrela

no céu a brilhar.

Cantar é um insulto

que o o bordão do brejo

não vai tolerar.

Reeducação

Maurício de Macedo

 - Alienada, essa negra Fulô.

Ao invés de fugir pro quilombo,

foi dormir com o senhor.

Reacionário, esse Jorge de Lima...

O poeta engajado falou.

E foi então que ele decidiu

a negra Fulô convocar.

Oito horas por dia

"O Capital" de Karl Marx

ela teria que estudar.

Ao poeta Jorge de Lima

pra respirar novos ares

mandaria cortar cana

em União dos Palmares.

Lonely hearts

Maurício de Macedo

No restaurante,

uma delas falou 

- O Mariozinho separou-se

da mulher.

E os olhos de todas

brilharam.

Dois meses depois,

reunidas novamente,

uma outra comentou 

- Vi o Mariozinho ontem.

Está de namorada.

Deve ter a mesma idade

que a filha...

E os olhos de todas

nublaram-se.

A borboleta

Maurício de Macedo

Feito o barão de Munchausen,

tenta sair do pântano

puxando os próprios cabelos.

(Com o agravante

de que já é calvo.)

Estende a mão, de repente,

para a borboleta que passa

volteando.

Quem sabe ela possa arrancá-lo

do atoleiro em que se debate.

João do Vale

Maurício de Macedo

O menino não foi

à escola.

Mas Deus ensinou

a canção.

A tristeza, ele pega,

mata e come

feito o carcará

no sertão.

Se a vida maltrata,

brinca na asa do vento

quem sabe fazer baião.

Traição

Maurício de Macedo

Os marxistas acreditam

que Marx é o caminho,

a verdade e a vida.

Marx afirmou

que a religião era ópio.

Os marxistas traíram

Marx.

Davi e Golias

Maurício de Macedo

O cientista pesquisa obstinado

pra desfazer o mito da Bíblia,

enquanto o Davi de Michelangelo,

segurando o bodoque no ombro,

franze a testa impávido

para o Golias da ciência.

Dia dos namorados

Maurício de Macedo

"Eu não ando só

Só ando em boa companhia

Com meu violão

Minha canção e a poesia"

Vinícius de Moraes

O dia dos namorados

é o dia de quem está

enamorado 

- da vida,

da poesia

ou de alguém

ao seu lado.

Seja a Musa do Parnaso,

seja pele roçando

na pele 

- sozinho ou acompanhado,

é preciso estar enamorado.

Rubicão

Maurício de Macedo

Fica na outra margem do rio

a terra chamada poesia.

Só os derrotados

conseguem fazer a travessia.

(A palavra dá volta por cima

onde o silêncio principia.)

César com todo o seu poder

tal Rubicão não atravessaria.

O artista

Maurício de Macedo

Uma vela que acende-se.

(Mais cedo ou mais tarde.)

E a vida será chama

consumindo a cera.

A xícara de café

Maurício de Macedo

A promotora de Justiça

pediu à funcionária,

antiga colega de escola,

que lhe servisse uma xícara

de café.

Quando a moça voltou

com a bandeja na mão

tropeçou e derramou o café

no colo da promotora.

A segunda parte da história

ocorreu apenas neste poema.

Na poesia pelo menos

os tolos e arrogantes

são castigados.

Não perde por esperar

Maurício de Macedo

Você vive asilado

no país chamado poesia.

Tudo bem.

Mas não perde por esperar.

Agentes da polícia secreta

vão entrar neste país

e vão sequestrar você.

É só uma questão

de tempo.

(Ah, o tolo que você é,

pensando que pode escapar

das garras da História...)

Dizer 

- essa mania que você tem.

Dizer é um ato

de contrapropaganda.

Não se diz impunemente.

Diana

Maurício de Macedo

A menina bonita

que dança no pastoril

pode ser a deusa virgem

correndo no bosque

e pode ser também a lua

caminhando no céu.

Mas ninguém sabe.

Nem mesmo a menina

sabe.

(E nem mesmo o namorado

da menina.)

Só o poeta sabe.

De cócoras

Maurício de Macedo

A História é um brejo 

- sapos coaxando

pra lá e pra cá.

Que se cuide o infeliz

que de cócoras com eles

não aprende a grasnar.

Cantar...

Cantar é o crime

que a História não vai 

perdoar.

A língua pegajosa do sapo

não alcança a estrela

no céu a brilhar.

Verso do amanhecer

Maurício de Macedo

O sol irrompendo

com seus gritos  de luz,

as nuvens movendo-se

tão lentas...

E o marulho

e o marulho

e o marulho...

Os cabelos da Musa

ondulando na espuma

que se derrama na areia.

Ah, pudesse fazer-lhe

respiração boca-a-boca...

Liberada

Maurício de Macedo

 - Casamento é instituição burguesa.

Incompatível com a mulher liberada.

A militante do women's lib

a vida inteira comentou.

Casou com a namorada,

reproduzindo no rito

e no fundamento legal,

a execrada instituição.