7/01/2021

Rubicão

Maurício de Macedo

Fica na outra margem do rio
a terra chamada poesia.
Só os derrotados
conseguem fazer a travessia.
(A palavra dá volta por cima
onde o silêncio principia.)
César com todo o seu poder
tal Rubicão não atravessaria.

O artista

Maurício de Macedo

Uma vela que acende-se.
(Mais cedo ou mais tarde.)
E a vida será chama
consumindo a cera.

A xícara de café

Maurício de Macedo

A promotora de Justiça
pediu à funcionária,
antiga colega de escola,
que lhe servisse uma xícara
de café.
Quando a moça voltou
com a bandeja na mão
tropeçou e derramou o café
no colo da promotora.

A segunda parte da história
ocorreu apenas neste poema.
Na poesia pelo menos
os tolos e arrogantes
são castigados.

Não perde por esperar

Maurício de Macedo

Você vive asilado
no país chamado poesia.
Tudo bem.
Mas não perde por esperar.
Agentes da polícia secreta
vão entrar neste país
e vão sequestrar você.
É só uma questão
de tempo.
(Ah, o tolo que você é,
pensando que pode escapar
das garras da História...)

Dizer 
- essa mania que você tem.
Dizer é um ato
de contrapropaganda.
Não se diz impunemente.

Diana

Maurício de Macedo

A menina bonita
que dança no pastoril
pode ser a deusa virgem
correndo no bosque
e pode ser também a lua
caminhando no céu.

Mas ninguém sabe.
Nem mesmo a menina
sabe.
(E nem mesmo o namorado
da menina.)
Só o poeta sabe.

De cócoras

Maurício de Macedo

A História é um brejo 
- sapos coaxando
pra lá e pra cá.
Que se cuide o infeliz
que de cócoras com eles
não aprende a grasnar.

Cantar...
Cantar é o crime
que a História não vai 
perdoar.
A língua pegajosa do sapo
não alcança a estrela
no céu a brilhar.

Verso do amanhecer

Maurício de Macedo

O sol irrompendo
com seus gritos  de luz,
as nuvens movendo-se
tão lentas...
E o marulho
e o marulho
e o marulho...

Os cabelos da Musa
ondulando na espuma
que se derrama na areia.
Ah, pudesse fazer-lhe
respiração boca-a-boca...

Liberada

Maurício de Macedo

 - Casamento é instituição burguesa.
Incompatível com a mulher liberada.
A militante do women's lib
a vida inteira comentou.

Casou com a namorada,
reproduzindo no rito
e no fundamento legal,
a execrada instituição.

A lira do serralho

Maurício de Macedo

Lambido pelo poder,
já não sentia dor.
 Entorpecido agora 
dedilhava a louvação
- palavras indolentes
 feito concubinas
e vigilantes e protetoras
como se fossem eunucos
do serralho.

Graça

Maurício de Macedo

Dizem que vez por outra
Deus abre uma mensagem
que o poeta envia pra Ele.
Mal lê, mal escuta.
Não responde.
Fecha o iPhone entediado
e volta pra ouvir o coro
dos anjos.

Ainda que seja apenas
por alguns minutos
e que Ele apague da memória
logo depois,
pode haver maior graça
do que ser ouvido por Deus?!

O poeta

Maurício de Macedo

Monge do deserto,
não oferece o pescoço
ao vampiro do poder.
(Ferem seu ouvido
a algaravia dos demagogos
e o grito das massas
domesticadas.)

Seu tempo escapa
impávido
das garras da História.
Seu ofício é escutar
distraído
os mortos anônimos
e secretar feito ostra
a pérola do silêncio.

Defesa

Maurício de Macedo 

- Fascista!
Grita-se de um lado. 
- Comunista!
Grita-se do outro.

O estigma silencia,
nega a palavra,
encerra definitivamente
qualquer possibilidade
de controvérsia.
Recurso dos pusilânimes
que sonham com tiranias,
o estigma é sempre
a melhor defesa.

Solidão

Maurício de Macedo

Não é a fuga desdenhosa
do poeta romântico,
em busca da musa
que não encontra lá fora.
Estratégia de sobrevivência
 - você está lúcido.

A musa está lá fora,
transtornada,
tapando os ouvidos.
Você a convida,
oferecendo-lhe um pouco
de  silêncio.
Ela não percebe os sinais
que você lhe dirige,
acenando tão aflito
na porta de casa.

O dote

Maurício de Macedo

Tinha olhos negros,
grandes, pestanudos.
(Sozinha num mundo de homens,
 a mãe viúva logo perdera
os bens que o esposo deixou.)

Tinha olhos negros,
grandes, pestanudos.
O casamento com o viúvo rico 
- não havia no trato amor.

Sete filhos,
uma vida de obrigações
e as dores lancinantes
de um câncer no útero.
(Pra que gastar dinheiro
com médico?!
Ela vai morrer
de qualquer jeito,
o marido falou.)

Tinha olhos negros,
grandes, pestanudos.

Palavras

Maurício de Macedo

A Musa canta, canta.
(Está sempre a cantar.)
E ele rabisca, rabisca.
É com palavras
e não com o ouvido
que ele escuta a Musa
cantar.

A Musa canta, canta.
(Está sempre a cantar.)
E ele rabisca, rabisca.
É com palavras
e não com os olhos
que ele enxerga o caminho
que é preciso caminhar.

A Musa canta, canta.
(Está sempre a cantar.)
E ele rabisca, rabisca.
É com palavras
e não com os pés
que ele pisa na terra
pra o Parnaso alcançar.

A Musa canta, canta.
(Está sempre a cantar.)
E ele rabisca, rabisca.
É com palavras
e não com a boca
que a Musa na testa
ele vai beijar.

A Musa canta, canta.
(Está sempre a cantar.)
E ele rabisca, rabisca...

Graça

Maurício de Macedo

É cheia de graça
a garota de Ipanema.
É cheia de graça
a Virgem Maria.
(O poeta namora na canção.
O padre bajula na reza,
arrastando um cordão
de puxa-sacos.)

Nossa Senhora talvez lamentasse
não ter vivido em Ipanema
nem ter conhecido 
o Vinícius de Moraes.
Se é sozinho o poeta
e a beleza que passa,
é o amor e não a bajulação
que enche o mundo de graça.

Banho de sol

Maurício de Macedo

De vez em quando
ela se esconde
num canto qualquer
do apartamento.
Procuro nos cômodos,
chamo por seu nome.
Nenhuma sombra,
nenhum ruído,
nenhum sinal.
(Parece que ela gosta
de me ver agoniado.)

Aparece depois 
- quando menos espero -
com um sorriso de Mona Lisa.
A manhã está radiosa.
O mar está claro.
Esqueço que me fez sofrer.
Estendo-lhe a mão e a convido
pra tomar banho de sol.

Caminharemos em silêncio
na praia.
A luz e o murmúrio das ondas
acordando mistérios no ouvido.

Ela também se esconde
caminhando a meu lado na praia.
Mas só para os outros.

Da poesia

Maurício de Macedo

- Não vive da poesia,
diriam talvez com razão,
quando sabe-se que a poesia
não paga a sua comida. 

- Não vive da poesia,
diriam talvez equivocados,
quando sabe-se que é a poesia
que o mantém vivo.

Espantalho

Maurício de Macedo

Quem não tem a coragem de olhar
pra dentro de si mesmo,
condena-se a perambular mudo
como se fosse um espantalho.

Só encontra a sua voz
quem tem a coragem de olhar
pra dentro de si mesmo.

Velhice

Maurício de Macedo

Coisas estranhas vão aparecendo
no corpo da gente
e o que é bom começa a definhar.
Como a gente não tem papa
na língua,
dizem que estamos ficando
gagá.
Deus nos dá a sabedoria
pra suportar
 - um leve sorriso
e uma ponta de tristeza
no olhar.
Há no entanto quem não saiba
a dádiva divina aproveitar.
E deixando-se implacavelmente
pela amargura dominar,
envelhece como fruta de carbureto
que fica podre sem madurar.

Um poeminha qualquer

Maurício de Macedo 


Um poeminha qualquer

feito marulho na concha.

Mas também não desdenho

se vier feito ondas do mar.


Um poeminha qualquer

feito um vaga-lume.

Mas também não desdenho

se vier feito uma estrela.


Um poeminha qualquer

feito espinhos de silêncio.

Mas também não desdenho

se vier feito flor da palavra.


Um poeminha qualquer

feito muletas.

Mas também não desdenho

se vier feito asas do albatroz.

Paternidade

 Maurício de Macedo


Há uma diferença fundamental
entre um poeta e um político.
A verdade é imprescindível
para o poeta.
Da mentira o político
não consegue abrir mão.

Há uma diferença fundamental
entre um poeta e um juiz.
O poeta sabe que a vida é breve.
O juiz tem a certeza absoluta
de que nunca vai morrer.

Há uma semelhança fundamental
entre o poeta, o político e o juiz.
Todos são filhos de Deus,
ainda que o Diabo, vez por outra,
reclame a paternidade.

Caderno de cultura

Maurício de Macedo

"Vaidade das vaidades"
Eclesiastes 1,2


Se o mundo não sabe 
de mim,
o jornalista amigo meu
trombeteia.

Que importa o Eclesiastes
quando existe o caderno
de cultura do jornal.

O louco

Maurício de Macedo

Pensa em voz alta.
(Ninguém é mais verdadeiro
do que ele.)

Dispensa interlocutor.
(Ninguém é mais livre
do que ele.)

E porque é tão livre
e verdadeiro,
ninguém acredita nele.

En/canto

Maurício de Macedo

Digo pra mim mesmo.
A Musa aproxima
o seu ouvido
e atira ao mar e ao vento
o que vier a recolher
do que eu digo.

Traduzidas em sargaço
e folhas secas,
deixarão de ser minhas
as palavras que a Musa
arrebatar.
(Aos pés do caminhante
distraído 
- na espuma das ondas
que  morrem na areia
ou na poeira da estrada 
a rodopiar.)

Digo pra mim mesmo.
Dizer pra si mesmo
é o grande salto do silêncio.
O resto é com a Musa
se ela achar que vale a pena
escutar.

Uma ideia

Maurício de Macedo

O roubo legitimado
não é roubo.
(É expropriação.)
O crime legitimado
não é crime.
(É castigo.)
A mentira legitimada
não é mentira.
(É um tratado filosófico.)

É tudo uma questão apenas
de se encontrar uma ideia
que possa legitimar tudo.
Um ideia feito enxaguante bucal
pra combater o mau-hálito.
Uma ideia feito água e sabonete
líquido
pra tirar a sujeira das mãos.

Depositário

Maurício de Macedo

Ele me dizia.
De vez em quando
ele me dizia.
Como se me pedisse
pra cauterizar o silêncio
um dia.

Ele me dizia
como se adivinhasse
que mais cedo ou mais tarde
 - brasa da palavra -
eu diria.

Diana

 Maurício de Macedo


A rainha do pastoril
não tem partido.
A deusa da caça
não queria saber de amor.
A lua percorre a noite
solitária.
A poesia não se deixa prender
pelos olhos do poeta
nem pelos olhos do leitor.

A todos encanta
e não é de ninguém,
a canção popular
sabiamente arrematou.


Os novos puritanos

Maurício de Macedo

Primeiro se decretou
que não se poderia dizer nada
politicamente incorreto.
E decretou-se depois
que não se poderia pensar nada
politicamente incorreto.
E decretou-se por fim
que não se poderia sonhar nada
politicamente incorreto.
E foi então que os demônios,
em forma de súcubos e íncubos,
vieram de noite assombrar.

O Doutor Freud no além
esboçou um sorriso irônico 
- o charuto entre os dedos,
volutas de fumaça no ar.