4/09/2020

Humor negro do humor negro

Maurício de Macedo

A militante afirmou iracunda
que a expressão humor negro
é muito preconceituosa.
O escritor lhe respondeu
que a expressão tem a ver
com trevas apenas
e quando faz referência
à pele escura
costuma dizer cor de chocolate.
- Chocolate?!
a militante falou.
Quer me comer, é?!
Vou processá-lo
por assédio sexual.

Corona-ovos

Maurício de Macedo

Uma mulher foi presa
vendendo ovos de Páscoa
recheados de maconha.
Quando os políticos
do Quanto pior melhor
souberam da notícia
disseram Eureka!
Vamos produzir ovos
de Páscoa
recheados com o vírus.

Poder e autoridade

Maurício de Macedo

Porque é muito grande o seu poder
e porque ninguém o contesta por medo
e porque muitos o bajulam por medo,
o magistrado confunde
medo com respeito
e se convence de que tem
 autoridade.

Pedestal

Maurício de Macedo

Três coisas apenas
fazem o juiz perceber
que não é um deus
- o câncer,
o infarto do miocárdio
e o acidente vascular cerebral.
Só um médico coloca o juiz


no seu devido lugar.

Camus e o estudante em Estocolmo

Maurício de Macedo

Indo e vindo
o estudante vituperava
como um possesso,
repetindo o que lhe sussurravam
 outros membros da seita
- Uma ideia justifica, sim,
a explosão de uma bomba
num ônibus lotado.

Ai, o crime imperdoável
do escritor
- preferir a mãe a uma ideia.

Albert Camus


Maurício de Macedo

Era excelente aluno
o menino pobre
e gostava de jogar futebol.
E o professor impediu a avó
(Pobre precisa trabalhar)
de retirar o menino da escola.

As mulheres ficavam loucas
por ele
e os demônios o odiavam
- o escritor mais amado do mundo,
que desprezava as injustiças
e amava a beleza e a verdade.

Discurso competente

Maurício de Macedo

Compara o funk ao jazz.
O narcotráfico a uma guerra
civil.
O traficante ao líder
de uma revolução.

Acólitos ouvem e aplaudem
- seu discurso tem a competência
que a academia lhe outorgou.
Que importa para a revolução
a menina estuprada
no baile funk?!
Que importa para a revolução
o revólver do assaltante
na testa do trabalhador?!

Como pavão abrindo a cauda
ela pontifica airosa
como se a academia fosse
o terreiro da História.

Irrespondível

Maurício de Macedo

A poesia diz mais
do que se costuma falar
- suas palavras não têm cabelos
aos quais se possa agarrar.
E o leitor incomodado se debate
como um náufrago no mar.

Irrespondível a poesia.
É ouvir e calar.
E aos demagogos e tiranos
que o silêncio costuma assustar
só resta a língua do poeta
mandar um dia cortar.

Galinheiro acadêmico

Maurício de Macedo

Não pensa.
É pensada.

Não diz.
É dita.

Não cria.
É criada.

Chega a molhar a calcinha
quando o guru da moda ela cita.

Sorrir

Maurício de Macedo

Fim de tarde,
de mãos dadas, corriam sorrindo
- atravessando a rua,
seguindo pela calçada -
a empregada doméstica e o filho pequeno
como se o ônibus que pegariam
os conduzisse até as estrelas.

Ai, o dom de sorrir para a vida,
mesmo quando ela oferece tão pouco.

Bela

Maurício de Macedo

Em noites de lua cheia
eu telefonava pra ela
Veja como a lua está linda.
E ela respondia
Bela! Bela!

É noite de lua cheia hoje.
Não telefonarei pra ela.
Ela é a própria lua agora,
bela, bela.

Brilha imensa no céu
do outro lado da janela.
E desce pra velar o meu sono,
bela, bela.

O cirurgião e a metáfora

Maurício de Macedo

O cirurgião domina bem a técnica,
mas o cirurgião não consegue
interpretar metáforas.
(Ao cirurgião interessa
extirpar o tumor.
Metáforas só atrapalham
a técnica do cirurgião.)

A metáfora não tem importância
para a sobrevida do paciente.
(A metáfora só tem importância
para a sobrevida do poeta.)
Estrela-guia do bardo,
a metáfora ofusca e desencaminha
o cirurgião.
Por isso ele diz a seus botões
Metáfora?! Tô fora.

Náufrago

Maurício de Macedo

Dizem que Luís de Camões
conseguiu nadar até a praia
e salvou o poema
que trazia consigo.

Não fosse pelo poema
não teria encontrado forças
para chegar até a praia.
Foi o poema quem salvou
Luís de Camões.

O casulo

Maurício de Macedo

Quando dói muito
a gente constrói uma fantasia
num casulo de silêncio.
Quando se rompe o casulo
dele sai voando
a mariposa da loucura.

Terror acadêmico

Maurício de Macedo

Dividem a poesia
em poesia de direita
e poesia de esquerda.
E usando clichês
à guisa de coquetéis-molotov,
pretendem assaltar o Parnaso
e violentar a Musa.

Indiferente a cacoetes
e esperneios,
a Musa sabe  que existe apenas
poesia e não-poesia.
E sorri inatingível.

Limpos

Maurício de Macedo

Palavras que ficaram,
volto para ouvi-las
com os ouvidos limpos
agora.
Saberei escutá-las melhor
e ela vão abrir
Abracadabra
o silêncio de outrora.

Com os ouvidos limpos
a gente pode voltar
para ouvir o que ficou
nos escombros da hora.

O filão

Maurício de Macedo

Deles ficou o veio
do silêncio.
Com a picareta da poesia
vou escavando o filão.
E a eles entrego
o metal da palavra,
com suor no rosto
e calos nas mãos.

Outsider

Maurício de Macedo

Perguntaram-lhe certa feita
por que não fazia parte
do Instituto Histórico
e Geográfico.
- Não sou historiador
nem geógrafo,
ele respondeu.

E  perguntaram-lhe então
por que não fazia parte
da Academia de Letras.
- Sou poeta,
ele respondeu.

Vinícius de Moraes e a garota de Ipanema

Maurício de Macedo

Dizem que o poeta Vinícius de Moraes
disse para a garota que passou
Olha que coisa mais linda!
De nariz empinado, porém,
a garota nem ligou.

Que corpinho dourado!
Que balanço!
o poeta continuou.
Politicamente correta,
o denunciaria por assédio,
 a garota ameaçou.
Ah, por que tudo é tão triste?!
o poeta arrematou.

Clandestinos

Maurício de Macedo

Ave Maria! "Vixe" Maria!
de vez em quando diz o ateu.
Diz até mesmo Pelo amor de Deus!

Com nomes falsos
que a ciência ou o materialismo
lhes deu,
sobrevivem clandestinos
- Deus e a Virgem Maria -
no coração do ateu.

Cavalo selvagem

Maurício de Macedo

Queres fazer política?!
Entra num partido político.
Deixa a poesia em paz.
A poesia é um cavalo selvagem
que é belo correndo solto
nas pradarias
e que não se deixa domar.

Esquece portanto das rédeas,
da sela,
das esporas, do chicote.
Deixa a poesia em paz.

Terreno minado

Maurício de Macedo

Pense duas, três,
quatro vezes...
antes de falar.
Lembrando que você tem
que falar.
(O silêncio é suspeito.)
Sisudo, sempre sisudo.
Lembrando que nada é
mais politicamente incorreto
do que o sorriso.

A flor

Maurício de Macedo

A caneta vai deslizando
- desenhando a flor da palavra.
Pétalas de silêncio vão estremecer
e colibris vão adejar
em torno da flor que se abre
no papel.

A arraia

Maurício de Macedo

Deslizando a caneta no papel
- palavras feito o cordel da arraia
que o menino vai empinando.

Logo o cordel vai arrastá-lo
e a arraia vai carregá-lo para o céu.

Envelhecer

Maurício de Macedo

"Il est difficile de rester empereur
en présence d'un médecin"
Marguerite Yourcenar


Você se aposenta pra ir a médico.
De médico em médico,
você vai expondo a sua intimidade,
a sua fragilidade mais humana,
e descendo do pedestal.

Plural

Maurício de Macedo

Refugiando-se em abstrações,
ignorava quem estava próximo
- a empregada doméstica,
o irmão.

Povo, proletariado...
A boca cheia do plural
- vazio do singular o coração.

Como diz a poesia

Maurício de Macedo

É preciso dizer
como diz a poesia.
Abracadabra do silêncio
- tesouro das mil e uma
noites
de insônia e de agonia.

É preciso dizer
como diz a poesia.
Levanta-te e anda
como diante do morto
Ele dizia.

É preciso dizer
como diz a poesia.
Comida de Tântalo
que a metáfora dispõe
todos os dias.

Parnaso

Maurício de Macedo

Ela me chama.
De lá de cima
ela me chama.
É íngreme e tortuosa
a subida,
mas ela me chama
- um sussurro apenas,
quase inaudível.

Tento apurar o ouvido
para discernir melhor
suas palavras.
E sei apenas
que ela me chama.

Subindo ouvirei melhor,
cada vez melhor.
Chegando lá
talvez eu fique sabendo
por que ela me chama.

Esperteza

Maurício de Macedo

A ideologia prende-se a você
como se fosse uma boia
- não deixa você mergulhar.
E a esperteza afasta você
da poesia.
A poesia é canto dos derrotados
- quem se dá bem na vida
não consegue escutar.

Crime

Maurício de Macedo

Se não podes ser igual
aos demais,
toma cuidado
- podes mexer sem querer
com o que está arrumado
nas cabeças.
E se é uma estrela
a diferença,
mais cuidado ainda
- a língua pegajosa do sapo
só atinge o vaga-lume
distraído.
Sê discreto, portanto,
te faz invisível,
circulando como uma sombra.
Faz tudo para que esqueçam
da tua existência.
O teu crime é existir.

Rio de Janeiro

Maurício de Macedo

De um lado, as milícias.
Do outro, o narcotráfico.
(Entre les deux
mon coeur balance,
sussurram os políticos.)
No fogo cruzado,
o povo.