6/30/2021

Capoeira

Maurício de Macedo

Tenha a coragem 
de enfrentar a poesia
se por acaso o poema
 vier a incomodar.
Saiba encarar as palavras
 - são exímias lutadoras
de capoeira.
Prove que também sabe
lutar.
Não jogue pedras no poeta.
Agredir o mais fraco é covardia
que só vem a desabonar.

Canção de ninar

Maurício de Macedo

O demagogo ordenou à suprema corte
que o tornasse um cidadão
acima de qualquer suspeita.
E a suprema corte tornou o demagogo
um cidadão acima de qualquer suspeita.
O demagogo ordenou ao papa
que o beatificasse.
E o papa beatificou o demagogo.
O demagogo ordenou ao compositor
que lhe fizesse uma canção
 de ninar.
Mas o compositor não conseguiu
fazer uma canção de ninar
para o demagogo.
(A Musa não permitiu.)
E o demagogo mandou assaltar
o Parnaso,
prender e enforcar a Musa.

Os puxa-saco puxam o saco
do demagogo,
lambem o chão que ele pisa.
O demagogo tem todas as mulheres
a seus pés,
menos aquela que ele mandou
enforcar.
O demagogo
 - ninguém sabe -
tem terror noturno.
O que o demagogo não daria
por uma canção de ninar...

Penadas

Maurício de Macedo

"passarão.../Eu passarinho!"
Mário Quintana


Pequenos psicopatas
em seus pequenos cargos
de chefia.
De um regime totalitário
acalentam a utopia.
(Fazer um colega de trabalho
adoecer
é de fato o seu grande poder.)

Pequenos psicopatas
em seus pequenos cargos
de chefia.
A poesia às vezes tem dó
daquelas almas penadas 
- como neste poema
em que foram evocadas -
e lhes dá uma chance de saírem 
- pequenas e raras escapadas -
das repartições escuras
onde vagueiam obcecadas.

Praia

Maurício de Macedo

Perguntaram ao poeta
 - Por que não se candidata
à Academia de Letras?!
E o poeta respondeu
 - Não é a minha praia.
E lhe perguntaram então
 - Qual é a sua praia?
E o poeta respondeu 
- Minha praia é a praia.
O fardão é o sol
deslizando na pele
e o discurso é o murmúrio
do mar no ouvido.

Mística

Maurício de Macedo

Crítica literária
e doutora em Letras,
a professora falou
com autoridade
 - É muito profundo
o que ela escreve.
É um gênio.
Por isso não é fácil
de se entender.

Pode ter havido poetas
esquizofrênicos.
Mas nenhum deles,
ao que se saiba,
escreveu seus versos
durante um surto
psicótico.

Data venia II

Maurício de Macedo

Você não entende nada
do que o magistrado diz.
(Você que é metido a besta
e que leu Marcel Proust
em francês.)

Deus escreve certo
por linhas tortas
(o magistrado também).
Insondáveis portanto
suas intenções
como as intenções de Deus.

Sorriso de Deus

Maurício de Macedo

Lê a Bíblia com outros olhos.
Deus compreende e acha graça
 - à parte, discretamente,
para que os padres e os pastores
não venham a perceber.
(Cansado de tanta bajulação
e de tanta falta de humor,
é Deus provavelmente
quem o convida para ler.)

Só o poeta consegue
fazer Deus sorrir.

Voltas por cima

Maurício de Macedo

Fica do outro lado
a terra chamada poesia.
Só os derrotados
conseguem fazer a travessia.

No outro lado
a palavra dá voltas por cima.
E faz do vencido vencedor
no ritmo e na rima.

Coragem

Maurício de Macedo

Fugir de si mesmo
é perder a voz
 - encravar-se no tempo
feito um espantalho.
Aprende a falar
quem tem a coragem
de olhar pra dentro.

Tiradentes e a rainha louca

Maurício de Macedo

Dizem que o tenente se revoltou
contra a coleta de impostos
que a rainha louca baixou.
Dizem que a rainha louca
ficou louca por ele
como Salomé pelo profeta
um dia ficou.
(Não correspondido também
o desatinado amor.)
Dizem que a rainha louca mandou
que fosse morto o rebelde
que sua paixão recusou.

Ah, como gostaria a rainha louca
de ter dançado a dança dos sete véus
como Salomé no palácio dançou.
Ah, como gostaria de ter beijado
a boca fria do morto
como Salomé arrebatada beijou.

Dizem que teve piorreia a rainha louca
e que perdeu todos os dentes
dias depois que o carrasco
o tenente enforcou.

De mala e cuia

Maurício de Macedo

De mala e cuia,
o comissário Andrei Jdanov
instalou-se nas democracias.
O politicamente correto
é o realismo socialista
do século XXI.

Amuleto

Maurício de Macedo


Pode tudo e sabe tudo.

A veste talar garante.

E de tal modo apegou-se

à toga

que até dorme com ela.

El sueño de la razon

produce monstruos,

foi Goya quem falou.

Prevenir-se portanto

nunca é demais.


Galardoados

Maurício de Macedo

"Ora (direis) ouvir estrelas!"
Olavo Bilac


A titulação lhes confere
poder e autoridade.
São eles que fazem
a lista dos convidados.

No lado de fora, sem convite,
o poeta conversa com as estrelas,
diante da noite imensa.

Boneco de ventríloquo

Maurício de Macedo

Há quem encontre sua voz
e diga o que vem do coração.
Há quem procure 
- balbucios do silêncio.
E há os falantes 
- ocos feito bonecos
de ventríloquo.

Comunicação só existe
entre os dois primeiros.
(É preciso haver palavras
de um lado e de outro.)
Não há maior solidão
do que a de um boneco
de ventríloquo.

Perguntas

Maurício de Macedo

Perguntou aos homens.
E os homens não ouviram,
atordoados pela algaravia.

Perguntou a Deus.
E Deus ficou calado,
ainda que ouvisse
o que ele dizia.

Perguntou ao mar.
E o mar lhe ofereceu
guardado num búzio 
 o murmúrio da poesia.

De volta

Maurício de Macedo

Ficaram lá trás
as vozes não escutadas.
São tudo o que me resta 
- o meu tesouro.
E os livros que leio
são tochas
que vou recolhendo
pra iluminar o caminho
de volta.

Traseiro

Maurício de Macedo

O compositor curva-se
para o demagogo.
O cineasta curva-se
para o demagogo.
E mostram o traseiro
pra arte.

Barato do além

Maurício de Macedo

O traficante confessou
que escondera a maconha
no cemitério.
E o zelador entendeu, então,
por que vinha encontrando 
- pela manhã, logo cedo -
as lajes um pouco afastadas,
algumas baganas ao lado.

Também são filhos de Deus
os defuntos.
E aproveitavam 
da disponibilidade da erva
pra dar uma bolinha.

Do pedestal

Maurício de Macedo

Duas pessoas apenas
fazem o juiz descer
do pedestal.
O médico 
- quando lhe comunica
o diagnóstico de câncer.
E  o poeta 
- quando espoca,
feito menino levado,
as palavras pomposas
que o togado carrega
como se fossem balões.

Concurso pra Deus

Maurício de Macedo

Deus aposentou-se
já faz tempo.
O concurso pra juiz
publicado no edital
é pra cobrir a vaga
que Deus deixou.

O fugitivo

Maurício de Macedo

Tem sonhos eróticos
o jovem padre?
Tem polução noturna?
Fica excitado às vezes
(ai, que tormento)
durante a vigília?

Talvez os íncubos
deixem de visitá-lo
na velhice.
No valhacouto do celibato,
o jovem padre aguarda,
penitenciando-se.

Compromisso

Maurício de Macedo

A professora universitária,
doutora em Literatura,
afirmou com desconfiança
- Ninguém sabe de que lado
ele está...
E rejeitou definitivamente
os poemas do poeta
comprometido com a poesia.

Do Monte Parnaso
a Musa cantou para o bardo,
imitando a dupla sertaneja
 - Pense em mim.
Ligue pra mim.
Não ligue pra ela...

O próximo

Maurício de Macedo

"Mas meu reino não é daqui"
João 18,36


Convém desconfiar
daqueles que pretendem
mudar o mundo.
Apaixonados por abstrações,
não conseguem perceber
quem está próximo deles.
(São incapazes de amar
uma pessoa real.)

Jesus nunca teve
tal pretensão.

Sensível

Maurício de Macedo

Tem audição e olfato
muito sensíveis.
(Não suporta gritos
nem mau-hálito.)

Não convide a poesia
para os palanques.

Boneco de ventríloquo

Maurício de Macedo

Há quem encontre sua voz
e diga apenas o que vem 
do coração.
Há quem permaneça calado
 - as palavras mexendo
feito caranguejos.
Há quem fale afetado
 - oco feito um boneco
de ventríloquo.

A comunicação só existe
entre os dois primeiros.
(É preciso ter algo
a dizer.
É preciso ter palavras
para ouvir.)
Não há maior solidão
do que a do boneco
de ventríloquo.

Graça

Maurício de Macedo

Dizem que vez por outra
Deus abre uma mensagem
que o poeta envia pra Ele.
Mal lê, mal escuta.
Não responde.
Fecha o iPhone entediado
e volta pra ouvir
o coro dos anjos.

Ainda que seja apenas
por alguns minutos
e que Ele apague da memória
logo depois,
pode haver maior graça
no mundo
do que ser ouvido por Deus?!

Aves de arribação

 Maurício de Macedo

"momentanément,
une valeur d'éternité"
Marcel Proust


No mundo de ontem,
feito aves de arribação
na poça que sobrara
no rio seco,
as palavras pousavam
para beber.


O poema

Maurício de Macedo 

Atento à música.
Obediente à palavra.
(Namorado da beleza.
Amigo da lucidez.)

Intransigente
com o poeta.
Indulgente
com o leitor.

Íntima

Maurício de Macedo

As fotografias expostas
nos porta-retratos da sala
e do gabinete
serão esquecidas um dia,
largadas talvez
numa lixeira qualquer.

A eternidade é coisa íntima,
não é mesmo?!
Morre com a gente.

Aqueles que pretendem mudar o mundo

Maurício de Macedo

"Les héros ne sentent pas bon"
Flaubert


De bom alvitre desconfiar
daqueles que pretendem
mudar o mundo.
Fissurados por abstrações,
são incapazes de amar
a quem está próximo.

Jesus nunca teve
essa pretensão,
não é mesmo?!
Seu reino não era
deste mundo.

COVID-19

Maurício de Macedo

Bate à porta do cidadão
de repente
feito agente da Gestapo
ou da NKVD.
Mas você tem a certeza
absoluta
de que o próximo não será
você.
(Não pensar pode ser 
 - não é mesmo?! -
a maneira que você encontra
pra se defender.)

Na porta da frente,
a visita inesperada
feito agente soturno
das ditaduras.
Na mangueira do quintal
um sanhaçu canta,
bicando a fruta madura.

Napoleão

Maurício de Macedo

 - Tremei, patronato calhorda.
Tremei, colegas rebeldes.
Tenho o poder da caneta
na mão.
(Trancado na sala
da repartição pública,
emitia ordens de serviço
como quem faz a revolução.)

Fazer um colega adoecer
foi a grande façanha
do pequeno Napoleão.

Eternidade

Maurício de Macedo

Ah, pudesse eu voltar
para ouvi-los...
(A poesia me empresta
o seu ouvido.
Quem sabe um dia,
ouvindo a eternidade,
eu possa ouvi-los também.)

Ai, limpa o meu ouvido,
poesia.
E me faz digno de ouvir
o que eu não soube escutar.

A visitante

Maurício de Macedo

A coluna entrevada,
a vista cansada,
as manchas na pele,
a degeneração das células...
Antes de chegar ela  envia
suas mensagens.
Dá tempo de se preparar
o quarto de hóspedes.
Quando chega de repente,
é um Deus nos acuda.
Mas sempre dá-se um jeito
de se acomodar a visitante.

Refrão

Maurício de Macedo

A professora universitária
democrata e progressista
comentou a respeito
do poeta 
- Ele sabe usar as palavras.
É uma pessoa perigosa.

As ditaduras amiúde
utilizam o mesmo refrão
da professora universitária
democrata e progressista.

Democratas

Maurício de Macedo

"L'artiste se dédouble
et doit rester aristocrate"
Mallarmé


É preciso oferecer ao povo
aquilo de que o povo gosta.
Mozart ou Shakespeare
não faria deles cães de guarda
a serem afagados e açodados.