1/02/2009

Escorial do Açúcar: Notas de Leitura

Roberto Motta
Doutor em Antropologia e professor da UFPE

Com que finalidade um antropólogo ou sociólogo, que não é poeta nem crítico de poesia, ousa comentar um livro de poemas? A resposta só pode ser uma. O cientista social comenta, nesses poemas, aquilo que pertence ao domínio da ciência social. Sem que os dois campos se confundam, o poeta descobre sua matéria na sociedade, na cultura e na história, e, do mesmo modo, o cientista social e o historiador vão descobrir seu material na matéria do poema, mas sempre se situando aquém daquilo que constitui a essência da poesia, que outra coisa não parece ser a esse comentador que a transfiguração estética do mundo - mesmo quando o mundo é feio, penetrado pelo mal e pela injustiça -, a apreensão do existente em termos de eternidade, daquilo que "se vai da lei da morte libertando". E terá sido por isso que Aristóteles, que, entre outras coisas, era fino crítico literário e autor de uma teoria muito refinada da criação poética, dizia haver mais verdade na poesia do que na história, que, no seu vocabulário, correspondia ao que hoje entendemos por ciência social.
Quando então eu, como antropólogo, me volto para O Escorial do Açúcar, de Maurício de Macedo, creio que vou descobrindo, transformadas em poesia, algumas características centrais de nossa civilização, bem como do ângulo psicológico através do qual o autor a apreende, não ficando aliás excluído que, nesse jogo de espelhos, entrem também algumas características do leitor-comentador. E sem mais prolegômenos, passemos à enumeração dessas características. Há, para começar, uma descrição transfigurada da sociedade alagoana - de uma sociedade arcaica, uma sociedade que data do tempo em que el­rei Dom Felipe II fez construir o Escorial, mas que ainda está mais presente do que nunca. Uma sociedade cheia de desigualdades sociais e raciais. Uma sociedade baseada no poder e na submissão, no sadismo de uns e no masoquismo de outros.
Já começamos a estar próximos de certas formulações de Gilberto Freyre, tendo aliás este Escorial muita coisa que é um diálogo implícito com a Casa­Grande de Gilberto Freyre. Mas não tão implícito que impeça o autor pernambucano de vir citado em epígrafe, de maneira talvez um tanto irônica: "Nenhum cristianismo mais humano e mais lírico do que o português", Vamos também notar que a temática do sexo penetra praticamente cada verso de Maurício. É a "escuridão do desregramento da carne e do silêncio de Deus", São as "tentações do mundo" que "mais fortes se hão de tornar: com tanta negra e índia podem os frades não pecar?". E, junto ao sexo, a culpa, menos explicitamente declarada, mas penetrando também o livro inteiro.
Penso entretanto que Maurício não está só dialogando com Gilberto Freyre. Há alguma coisa de Freud e até de Ingmar Bergman na temática constante dos poemas e portanto - este comentador agora se dispondo a fazer um afirmação muito arriscada -, o universo de Maurício não é mais simplesmente (apesar da epígrafe) o de Gilberto Freyre e do catolicismo lírico dos lusos-brasileiros, mas contém forte infusão do protestantismo associado à chamada "modernidade". Já não se trata da naturalidade com que se pratica o sexo em Casa­Grande & Senzala ou mesmo em Essa Nega Fulô, de Jorge de Lima. Maurício de Macedo acrescenta a seus predecessores, de acordo com minha percepção (mas eu nasci protestante), a angústia calvinista. Ele pertence a outro tempo. Há em Maurício alguma coisa da preocupação com as raízes do Brasil e com a "negação" dessas raízes, que se encontra em Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo na interpretação que, do autor paulista, faz outro autor paulista: o Professor Antônio Cândido.
A filosofia da história é vício profissional deste comentador. Não creio entretanto que eu simplesmente a projete sobre o autor dos versos. Não sei até que ponto ele foi deliberado nisto, mas em muitos trechos se encontra o contraste entre a civilização da palavra e da racionalidade, que é a civilização da modernidade (e, neste sentido, Maurício também se inscreve na linhagem de Max Weber), e a civilização da festa, da imagem, do teatro ritual e do barroco, que é a do Brasil tradicional. Considero a apresentação desses contrastes como um dos pontos mais fortes de todo o livro e dou exemplos: "Para quem não lê a Bíblia, /para quem não sabe ler, /a volúpia das formas de pedra/ e dos santos de cedro, /quase vivos, /a dizer que Deus entra pelos olhos", E, mais adiante, "O drama divino tão próximo:/os santos baixando entre os homens /Deus entrando pelos olhos e pelos ouvidos". E arremata: "As palavras são os punhais /atravessando o coração. /A palavra é luz e som, flechas sacudindo o silêncio profundo"...
Mas que o vício profissional de quem redige estas notas, querendo por toda parte descobrir ciência social, não nos iluda. Maurício está fazendo em primeiro lugar literatura e é como tal que deve ser apreciado e saboreado. Não lhe falta inclusive humor: "Nosso Senhor acolhe a todos /carinhosamente, inclusive os pequenos vendilhões /do templo", nem muitas outras sutilezas. Tantas, que eu chego até a pensar que, quando ler estas notas, Maurício vai pensar que muitas me escaparam. Registro apenas uma, no poema O Gato e o Monge: "O vulto desliza sobre o muro, salta rápido, preciso, /dirigindo-se para a porta entreaberta /da cela de Frei Manuel. /Frei Manuel não tem medo".
História, antropologia, muita psicologia, paixão, culpa, não sei se redenção, mais uma teoria inteira do barroco e das formas de pensar passam pelo livro de Maurício. E cada leitor, estou persuadido, será atingido em seu ponto fraco - ou em seu ponto forte. O autor joga muitas pedras para o ar. Não há cabeça, eu penso, nem de leitor nem de autor, que deixe de ser atingida.

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