12/28/2018

Chuva

Maurício de Macedo

Ficou nu sob o céu,
aguardando que as palavras
chegassem
como se fossem a chuva
- a escorrer pelos cabelos,
pelos olhos,
pelos ouvidos,
pela boca,
por toda a extensão
da pele...

Para que germinasse o grão
da poesia 
- as folhas tenras se abrindo
em busca do sol.

Maçã

Maurício de Macedo

Um silêncio daqui,
um silêncio de lá...
Há tanto silêncio
a me acompanhar.
Quando paro
e escuto um silêncio
mais aprendo a falar.

  Como se fosse Adão no desterro
mordendo uma nova maçã,
escuto um silêncio hoje,
outro quem sabe amanhã.

Décimo terceiro salário

Maurício de Macedo

É para o cachê do Papai Noel.
(Quem mandou convidar
uma celebridade?!
O menino de Belém
não cobrava nada...)

Ouro, incenso e mirra

Maurício de Macedo

Pudessem ser ouro,
incenso e mirra
as palavras,
ainda que não fosse
nenhum rei mago.

Pudesse chegar
até aquele menino,
ainda que não houvesse
nenhuma estrela guia
- tão longa a estrada,
imensa a escuridão.
E pedir-lhe perdão ajoelhado
- os pés sujos de poeira
e um poema nas mãos.

7/28/2018

Futebol

Maurício de Macedo

No estádio lotado
deslizando sobre o gramado
de um lado para o outro
a onda que vai e vem
- o balé que magnetiza o mundo.
Sonho dos meninos pobres 
do Brasil.
Brincadeira maior
de todos os meninos.

Menos brasileiro,
menos menino
- há deformidade que não se vê
e que faz a gente seguir


a vida inteira claudicando.

Fazendeiro do mar

Maurício de Macedo

O sol gritando o seu grito de sangue
anunciando a manhã
As pegadas na areia
que o leque de espumas vem apagar
O mistério soprando na brisa
E esse lembrar pelo avesso,
esse deslembrar
Ah, deixai-me, Drummond,
ser fazendeiro do mar

A cabeleira da musa
agitando-se no sargaço
A orelha do tempo
auscultando no búzio
A taça do silêncio
erguendo-se no coral
Os cavalos desembestados
nos vagalhões contra o arrecife
- são versos seus cavaleiros
gemendo no ar
Ah, deixai-me, Drummond,
ser fazendeiro do mar

É palavra o peixinho
mordiscando o peito do nadador
E o movimento dos braços
marcando o compasso na água,
puxando a canção devagar
Ah, deixai-me, Drummond,
ser fazendeiro do mar

É o vai-e-vem das ondas
onde a memória vem descansar
E as pegadas na areia 
que o leque de espumas vem apagar
Ah, deixai-me, Drummond,
ser fazendeiro do mar

Elis Regina

Maurício de Macedo

Liguei a televisão ontem,
tarde da noite
- ela estava cantando...
Imaginem que disseram
ser uma gravação antiga
aquela cena tão recente.

Só falta agora
que ela seja apresentada
septuagenária
num programa  ao vivo
(ela que só tem trinta e seis anos).

(Esse povo pensa
que a gente é idiota,
não é mesmo?!)

Desassossego

Maurício de Macedo

O político faz do morto
seu boneco de ventríloquo
e o conduz ao seu palanque.
O historiador o convida
para atuar numa peça de teatro,
num papel concebido 
especialmente para ele.
Interesses mais prosaicos,
a família briga na Justiça
por seus bens materiais.

Os vivos não deixam o morto
descansar em paz.

4/20/2018

Bonito


Maurício de Macedo

Diz bonito
porque diz verdadeiro.
Puxa de dentro de si a palavra
como quem puxa um peixe
debatendo-se no anzol.

Diz bonito
- volutas do peixe no ar,
escamas de prata
refulgindo ao sol.

Distante


Maurício de Macedo

Você olha tão longe
e pronuncia palavras
tonitruantes...

Você se debruça
no espelho da História
feito Narciso na fonte
e não consegue ver
nem ouvir
quem está perto de você.

Invasores


Maurício de Macedo

Entraram no prédio
da Academia Alagoana de Letras
- casarão que pertencera
ao poeta Jorge de Lima.
Roubaram a fiação elétrica
e o botijão de gás.
Não tocaram nos livros.
Antes de ir embora
defecaram no salão.

O poeta Jorge de Lima
deve ter dado boas risadas
ao saber que os ladrões
deixaram como lembrança
um montículo de cocô
para os verdadeiros invasores
que se apossaram da sua casa
fazia já alguns anos.

Pobre


Maurício de Macedo

O funkeiro rimou arrevesado
um discurso de vingança social.
E o intelectual disse
que o funkeiro era um grande poeta.

A menina foi estuprada
no baile funk.
E a líder feminista não disse nada.

Dai ao pobre o que é do pobre.
O político afirmou
que o chefe do narcotráfico
que dominava o morro
era um guerrilheiro revolucionário.

Em feitio de oração


Maurício de Macedo

- Rabiscar sempre,
teria dito o poeta Drummond.

Rabiscar
como quem reza diariamente.
Ainda que Deus jamais se digne
a responder,
tem um dia em que Ele pelo menos
escuta.


Elas não usam GPS


Maurício de Macedo

Não era o que ele queria
dizer.
E ficava no poema
a frustração do não-dito.
As palavras não usam GPS
- o conduziram por outro caminho,
ainda que o novo rumo
também fosse bonito.

Borboletas



Maurício de Macedo

Há versos adejando
como borboletas...
Estende as mãos aguardando
que venham pousar.

Ai, a agonia da espera
de que nas pontas dos dedos
palavras como flores
venham brotar.

Estrelas


Maurício de Macedo

Caminhava cabisbaixo
há muito tempo...
Viravam palavras
as estrelas refletidas
nas poças da calçada.



3/21/2018

Novos-ricos da cultura


Maurício de Macedo

Diziam Drummond,
diziam Clarice...
como se fossem seus parceiros,
com os quais privassem
da maior intimidade.

Saltitando como gralhas
com penas de pavão,
a afetação se disfarçava
de naturalidade.

Imagem e semelhança


Maurício de Macedo

Alguém diz
Parece com você.
E na imagem e semelhança
do filho jovem
 de algum modo se refaz
o moço que um dia ele foi.

Privilégio de quem é pai
- a juventude perdida
que no filho se refaz.
Não é à toa que Deus é eterno

Gente humilde


Maurício de Macedo

"É gente humilde
que vontade de chorar"
Garoto/Vinícius de Moraes/Chico Buarque


Todos tinham a pele
cor de chocolate.
Ele dirigia a bicicleta,
a mulher na garupa
e as duas meninas
- laçarotes nos cachinhos dos cabelos,
arrumadinhas no fardamento escolar -
sentadas no banquinho
que ele improvisara
preso ao guidon.

Ele, operário da construção,
provavelmente.
Ela, empregada doméstica.
As meninas,
alunas do grupo escolar
municipal.

Passei ao lado e percebi
que há muitos brasis,
além da política
e da página policial.

Epistemologia do pum


Maurício de Macedo

O intelectual francês pesquisou 
e escreveu 
sobre a história do pum
- o pum na Antiguidade,
o pum na Idade Média,
o pum na Revolução Francesa...
E virou coqueluche o livro
sobre a história do pum
- na periferia sobretudo
onde a moda chega
em primeiro lugar.

E os assanhados acadêmicos
passavam o tempo a cogitar
- o pum no feitio de Marx,
o pum no feitio de Freud,
o pum no feitio dos gurus
que costumam abundar.
(Não era coincidência o verbo.)

E criaram-se linhas de pesquisa
do pum,
pós-graduações do pum...
Doutores e pós-doutores competiam
com paradigmas diversos
sobre a histórica nacional do pum
- o pum de Zumbi,
o pum de D. Pedro II...
na visão marxista,
freudiana,
foucaulteana...

E era pum pra lá e pum pra cá,
pelo menos enquanto durasse
o frenesi.
(Do outro lado do oceano
alguém já escrevia
sobre a história do xixi.)