12/02/2019

Futurista

Maurício de Macedo

A gente se alimenta
de remédios
- pra não engordar
e pra não envelhecer.
Vão-se os prazeres da mesa.
Há outros prazeres
- como mentir,
roubar,
matar


e até mesmo foder.

11/16/2019

República

Maurício de Macedo

Sem saber o que dizia,
um marechal a proclamou.
Com mãos de ferro
um outro a consolidou.
Quem a concebeu?!
Os filhos dos barões do café
que estudavam no exterior.

Num rincão distante,
entre lagoas e coqueirais,
os instrumentos viraram mito
- terra dos marechais.
É que são espelhos os mortos
onde os vivos querem se ver.
E uma fantasia no passado
costuma adornar o poder.
Ao senso humano porém irrita
a contraditória aleivosia
- posa de mãe da República
uma nova monarquia.

O Cristo jansenista de Santa Maria Madalena da Alagoa do Sul

Maurício de Macedo

Braços levantados,
olhando para o alto
- só para os escolhidos
haveria salvação.
Chegara clandestino
o santo herege
fugindo da inquisição.
(Pouco afeitos à leitura,
os franciscanos não perceberam
a tal dissimulação.)
E ele esperava a chegada
dos calvinistas batavos
àquele perdido rincão.

Os calvinistas chegaram,
mas não vieram pra ficar.
e ele ficou sozinho
com sua esperança perdida
que ninguém soube decifrar.

Só na América tropical
numa igreja com nome de pecador
poderia se abrigar aquele Cristo
soberbo na sua dor.
Porque não existe pecado
abaixo do Equador.

Finados

Maurício de Macedo

Arrancadas do silêncio,
as palavras são flores
que levo amiúde para eles.
(Saem por vezes despetaladas
ou me deixam com as mãos feridas
quando tento arrancá-las.)

Não sei se eles gostam
desse tipo de flores...
Teriam preferido talvez
que desabrochasse o girassol
do meu ouvido de outrora.

Os críticos

Maurício de Macedo

Com suas lanterninhas
vão apontando aqui e acolá
no chiaroscuro da noite.
Acima deles, imenso,
o céu estrelado.
A luz que direcionam
não consegue ofuscar
as estrelas
que não precisam do foco
de suas lanterninhas.

9/22/2019

Evolução da espécie

Maurício de Macedo

O homem maltrata
o homem.
O homem enlouquece
o homem.

O único animal
que sabe maltratar
e enlouquecer
o outro.

O suicida

Maurício de Macedo

Carregava sua história
como quem carrega uma cruz.
Até que um dia exausto
caiu sob o peso do lenho
que o esmagou.

Sua aldeia

Maurício de Macedo

"Se queres ser universal..."
Leon Tolstói


Não fale com amargura
nem fale com adulação.
Não deixe sua aldeia
morder sua língua
nem lamber seu coração.

É preciso sentir compaixão.
Estenda sua mão
para que ela se levante,
sem deixar que ela puxe
você para o chão.

Fantasmas

Maurício de Macedo

Converso com fantasmas!
exclamou afetado o poetastro,
ainda que os fantasmas
nunca o tivessem escutado.

Avessos a arroubos etéreos,
é das coisas da terra
que os fantasmas gostam
- os pés feridos
na longa estrada,
cinzas na cabeça,
crepúsculo nos olhos...
Têm ouvidos sensíveis
- para chegar até eles
as palavras precisam
atravessar o silêncio.

Independência

Maurício de Macedo

O príncipe gritou, dizem,
às margens do riacho.
Historiadores cascavilham
 determinantes econômicos
 e sociais.
E os políticos auferem  lucros
- cada um puxando a brasa
para a sardinha da narrativa
que lhe convém.

O menino acha ótimo
porque é feriado
e não tem aula.
E sonha em ter um cavalo
tão bonito como aquele
de D.Pedro.

9/05/2019

Furando a fila

Maurício de Macedo

Passaram na frente do poeta
Jorge de Lima
e do antropólogo Arthur Ramos...
(Já estão furando a fila.)
Dizem que Graciliano,
Aurélio e Nise,
indignados,
já estariam se preparando
para deixar a vida de estátua.

Fé pública

Maurício de Macedo

Recebeu a notificação
- Polícia Rodoviária Federal.
(Nunca trafegara pela via
que citava o comunicado.)
Recorreu inutilmente
contra a acusação da fé pública
e pagou a multa indignado.

Outras notificações  chegaram
pela mesma infração
e com o mesmo resultado.
Inquestionável a fé pública
- depois de tanta multa
o documento de habilitação
foi cancelado.

Quem mandou inventar
de ser poeta...
(Não sabe que a poesia
é o maior crime contra o Estado?!)
Perder a habilitação
era só o começo.
Que ficasse preparado...

Sensitiva

Maurício de Macedo

A cordelista
- versinhos tão ingênuos -
caiu no chão  batendo-se
e revirando os olhinhos
quando o poeta adentrou
- sozinho e discreto -
o saguão da bienal literária.
(Porque ele falava
o que ela não sabia falar
e porque ele dizia
o que ela não conseguia entender,
um silêncio mordia a sua língua
e enterrava as garras aduncas
nas fibras dos seus músculos.)

O corpo protestava
- a palavra não conseguia.
(Ainda que adulada
pela Secretaria de Cultura,
havia uma distinção
que ela jamais alcançaria.)
Quando se recuperou
disse que era sensitiva
e que seu corpo reagira
(Gira, Gira)
à passagem de um espírito
do mal.

Um homem só

Maurício de Macedo

Atiçando o faro do predador,
há uma ferida invisível
num homem só.

O silêncio e o retraimento
não bastam para proteger
um homem só.

Mediocridade galardoada

Maurício de Macedo

Disse que era Shakespeare
o autor de "Édipo-rei".
E mentiu despreocupada
ao dizer que tinha lido
"Os irmãos Karamázov".

Enchia a boca de conceitos
memorizados na pós-graduação
feito criança chupando balas
de açúcar.
(O que eram Sófocles,
Shakespeare e Dostoiévski,
diante do guru adotado
na pós-graduação?!)

Rei Momo

Maurício de Macedo

Fincou o cetro de bobo da corte
no terreiro das letras da cidade
- Rei Momo primeiro e único.

Alguém já falou que os bufões
são os piores tiranos.
(A vaidade é um terreno
minado.)
Acautelai-vos, portanto,
ingênuos,
vós que pretendei penetrar
no terreiro das letras da cidade
onde já fincou o cetro
o Rei Momo
primeiro e único.

7/27/2019

Poesia

Maurício de Macedo

A palavra como a corda
que vai desenrolando-se,
desenrolando-se...
até chegar ao fundo
do  poço.
E ele segura na corda
e vai segurando e subindo,


segurando e subindo...

O ovo da serpente

Maurício de Macedo

O ciclista que dirigia no calçadão
quase agrediu o senhor
de meia-idade
porque este lhe apontou
a ciclovia ao lado.

Fazendo gestos de ameaça,
o motoqueiro perseguiu o carro,
depois que o motorista o advertiu
pela falta de respeito


ao sinal fechado.

7/14/2019

Rasputin

Maurício de Macedo

O sarcasmo histriônico,
a personalidade histérica...
Impunha-se na igrejinha provinciana
como um Rasputin das letras.

E os áulicos se curvavam
diante das pantomimas do guru
que poderia açodá-los
como se açodam os cães,
se quisesse.

Risco

Maurício de Macedo

Quem não está comigo
está contra mim,
levanta-se a bandeira.
Se havia risco na palavra,
não há menor no silêncio.
E os cães de caça da paranoia
rosnam em torno do que se cala.

Poesia, ai de ti, poesia,
sempre tão recôndita,
a proteger o ouvido
dos espinhos das algaravias...