3/01/2009

Passional

A Negra Fulô levantou-se nuinha,
vestiu o cabeção
e saiu devagarinho do poema
para não acordar o senhor.
Saiu do poema
e atravessou o tempo
a Negra Fulô...

A negra atravessou o tempo
e foi trabalhar como doméstica
em Maceió.
Foi lá que conheceu Eusébio,
apelidado de Zumbi,
negro forte, de sorriso aberto,
que trabalhava de estivador,
depois de cortar cana
nas fazendas de União.

Conheceram-se numa casa de dança
na rua Barão de Atalaia,
onde havia muita briga
e até peixeirada.
Dançaram várias vezes,
durante muitas noites,
até que um dia ficaram de namoro
Zumbi e a Negra Fulô.
Mas não foi apenas Zumbi
que se encantou pela negra Fulô.
Virgulino, ajudante de pedreiro,
sertanejo de olho vesgo,
que escondia numa caixa
a cabeça murcha do avô,
viu Fulô pela primeira vez
quando foi trabalhar na obra,
perto da casa onde a negra se empregou.
E sua vista se escureceu
como no poema a vista do senhor.
Pensava na negra no ônibus,
no trabalho...
Sonhava com ela de noite.
De seu coração
tomava conta um negror.

Mas a negra nem ligou
para o olhar arrastado de Virgulino.
(Repara se ia querer
um homem feio daquele,
de olho troncho?!
E ainda por cima macambúzio...
Bicho do mato!)
Bom mesmo era o chamego
nos braços do estivador,
o sorriso aberto do negro
e o fungado no pescoço...

Como se não bastasse a sina
de carregar numa caixa
a cabeça murcha do avô,
Virgulino carregava agora
um punhal cravado no peito:
a indiferença da negra
ao pedido silencioso
dos seus olhos...
E aboiava baixinho
para as estrelas
nas noites solitárias.

Para aumentar o sofrimento
passou a freqüentar
a casa noturna onde a negra ia dançar.
E era uma tortura
vê-Ia bonita
nos braços do estivador,
os sovacos suados
e as coxas quase rasgando
a calça apertada.
O zarolho assuntava,
bebendo cachaça no balcão.
Olhava tímido pra negra
e a negra nem ligava.

Certa noite, porém,
encorajado pela bebida,
falou com a língua enrolada
quando a negra passou:
- Fulô, Fulô...
e mal se equilibrando nas pernas
apoiou-se sem querer
nos ombros desnudos da Negra Fulô.
- Te enxerga, enxerido!
assim a negra falou,
seguindo-se rapidamente
um soco do estivador.

O sangue escorreu do nariz de Virgulino
e trouxe-lhe à boca um gosto esquecido,
acendeu em seus olhos um fogo distante
como o sol na caatinga.
Um carcará gritou em seu peito;
segurou no cós da calça
o punhal que fora do avô
e depois foi apenas um golpe
no coração de Zumbi.

Virgulino foi preso,
condenado por homicídio,
mas deixaram que levasse consigo
a caixa com a cabeça do avô.
A Negra Fulô teve medo.
Fugiu para o poema,
retirou o cabeção
e se deitou nuinha
ao lado do senhor
que ainda dormia.

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